Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Rififi pós-concreto

A refrega recente entre os poetas Ferreira Gullar e Augusto de Campos nas páginas da Ilustrada reavivou uma disputa central na cultura brasileira e deixou mais nítidas as engrenagens que movimentam o mundo intelectual.

Em sua coluna de 17/7, “Redescoberta de Oswald de Andrade”, Gullar escreveu que os irmãos Augusto e Haroldo de Campos não teriam dado valor a Oswald (1890-1954) não fosse por sua insistência. Augusto, em carta publicada no Painel do Leitor em 24/7 e em artigo de 30/7 (“Sobre a Gula”), afirmou indignado que a conversa nunca existiu. No último domingo, Gullar fez uma tréplica irônica, “Mentira tem Pernas Curtas” – e até ontem, quando a Ilustrada publicou novo artigo de Campos, as feridas seguiam sem cicatrizar.

A briga entre Campos e Gullar não remonta exatamente às últimas semanas: começou em 1957, com discordâncias quanto à teoria da poesia concreta, e se agudizou em 1959. Nesse ano, Gullar formalizou a dissidência em relação aos irmãos Campos ao fundar o grupo neoconcreto, do qual participaram, entre outros artistas, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape e Amilcar de Castro.

O grupo desempenhou papel determinante na arte contemporânea, mas boa parte do pioneirismo que lhe é atribuído tem a ver com a disposição de Gullar em construir em torno de si uma aura de vanguarda e singularidade.

Líder

A inclinação dos concretistas em comprar brigas e alardear o próprio pioneirismo é conhecida. Mas a polêmica dos últimos dias é uma boa razão para voltar aos textos em que Gullar discorre sobre seu papel entre os neoconcretos, face pouco estudada de sua obra. Ele não é apenas líder do grupo, mas seu principal intérprete.

Tanto em Experiência Neoconcreta (2007) como em Etapas da Arte Contemporânea (1998), coletânea de artigos escritos entre 1959 e 1960, ficam nítidas suas estratégias de liderança. Vistos à luz das brigas recentes, ganham novo sentido. Identificar neles o ímpeto revisionista ou belicoso de Gullar é uma forma de redimensionar o papel do grupo de que fez parte.

Experiência Neoconcreta [Cosac Naify, 162 págs., R$ 79] pretende ser a palavra final sobre o significado do grupo sob a ótica de seu líder ““traz um ensaio inédito, o manifesto e reproduções de obras do período. O livro procura transformar o neoconcretismo num emblema e consolidá-lo como marco fundador da arte contemporânea no Brasil.

A tese é a seguinte: “O movimento neoconcreto, cuja primeira mostra se realizou em março de 1959, deu o passo adiante que a vanguarda construtiva europeia evitara dar”, escreve Gullar. Isso teria se dado com a superação da tela como suporte e a instituição de uma relação ativa entre a obra e o espectador. “Este fato define a sua radicalidade e ao mesmo tempo sua significação na história da arte contemporânea.”

Vê-se de saída o tamanho da ambição: os passos iniciados pelo cubismo, por Maliêvitch (1878-1935) e Mondrian (1872-1944), culminaram nos jovens reunidos em torno daquele grupo no fim dos anos 1950, no Rio de Janeiro.

Hipérboles dessa ordem dão o tom do livro do início ao fim. O autor reivindica para seu grupo o mesmo estatuto na história da arte que se confere ao cubismo e ao construtivismo russo.

Bichos

Já estava nesse livro a sugestão de que, não fosse por Gullar, os poetas concretos não teriam dado o devido valor a Oswald de Andrade ““mas, à época, não houve repercussão. O ponto mais controverso é a afirmação de que os “Bichos”, de Lygia Clark, são inspirados por seu livro-poema “Fruta”, incluído nessa edição.

Assim como os trabalhos de Lygia, o livro-poema se deixa manusear pelo espectador, que o “descasca”, como a uma fruta. Por esse atributo, seria pioneiro na instituição da relação ativa entre obra e público. Assim, Gullar reivindica para si a concepção de um dos conjuntos de trabalhos mais celebrados da arte contemporânea.

Nada contra a afirmação de que o conceito de participação do espectador na obra tornou-se um traço que distingue a arte neoconcreta ““e que o papel de Gullar como formulador desse conceito é central. Mas reivindicar o protagonismo a seus livros e não aos trabalhos diletos do grupo, como os de Lygia Clark ou Hélio Oiticica, é um passo mais ousado.

“Como os livros-poema nunca foram editados e, em 1961, afastei-me do grupo, dando outro rumo a meu trabalho poético, a verdadeira origem disso foi naturalmente atribuída a outros artistas neoconcretos, sem que se perguntasse como surgiu”, escreve Gullar.

Manifesto

Os artigos reunidos em Etapas da Arte Contemporânea [Revan, 304 págs., R$ 60], que funcionam como desdobramento do “Manifesto Neoconcreto”, de março de 1959, começam a sair naquele mesmo mês, no Jornal do Brasil, e seguem até outubro do ano seguinte.

Tudo o que no manifesto aparece de modo telegráfico e condensado encontra nos artigos espaço para justificações em pormenor. Há correções de rota, aprofundamentos e a possibilidade de fazer um recorte da história da arte sob medida para apontar o neoconcretismo como herdeiro direto das conquistas mais importantes da arte do século 20.

O percurso sugerido por Gullar tem início no cubismo e no futurismo , ambos na primeira década do século, passa aos movimentos russos e ao neoplasticismo, na virada dos anos 20, segue com a Bauhaus (1919-33) e desemboca na arte concreta e na arte neoconcreta. Sobre cada um desses temas publicou um conjunto de textos, no geral desiguais na ambição e na profundidade, que seguem um formato próximo ao de uma enciclopédia.

Há um apanhado inicial sobre cada movimento, textos sobre os artistas de cada escola, reproduções dos principais trabalhos, cronologias e, ao fim de cada série, uma “tentativa de compreensão”. Já no primeiro texto, dedicado ao cubismo, Gullar explicita a proposta. “O cubismo continua mesmo é com Mondrian e Maliêvitch ““se não estamos sendo excessivamente otimistas”“, com a nova fase da experiência concreta no Brasil: a arte neoconcreta”.

Ao longo de mais de um ano, o crítico dedicou-se à tarefa de construir uma narrativa sobre a história da arte que já tinha ponto de chegada definido desde o começo. Não é casual que sua maneira de explicar cada movimento esteja orientada pela busca do que neles possa haver de comum com o esquema neoconcreto.

No cubismo, por exemplo, Gullar vai buscar os elementos capazes de atenuar o racionalismo e a dimensão cientificista. O autor que serve de referência para explicar os pintores cubistas é Merleau-Ponty (1908-61), justamente o teórico de que se vale para dar embasamento à reação neoconcreta.

Não impressiona, pois, que os cubistas apresentados por Gullar sejam neoconcretos avant la lettre. A virtude reivindicada para o grupo de jovens do Rio de Janeiro no que diz respeito ao rompimento com padrões estabelecidos de construção não fica longe da que é atribuída a Picasso e seus pares.

As teses de ambos os livros são muito semelhantes. No primeiro, há um crítico jovem e habilidoso a trilhar um caminho de liderança. No segundo, de 2007, um poeta consagrado que percebe em retrospecto a importância histórica do grupo de que participou e carrega nas tintas ao reivindicar seu quinhão nesse enredo.

Em ambos os casos, o resultado é uma glorificação do grupo neoconcreto que soa anedótica quando vista longe do contexto em que foi produzida.

Mas é raro que o contexto seja levado em consideração quando se faz uso desses textos, ainda hoje fontes entre as mais citadas para atestar a importância do neoconcretismo. O interesse da polêmica em curso é este: ela põe a nu uma disputa latente que ajuda a explicar boa parte das divergências que passaram para a história da arte como meras distinções formais.

É claro que o mesmo procedimento é evidente na teoria da poesia concreta. Ninguém mais do que os concretistas foi capaz de reescrever a história da literatura para se colocar como herdeiro de uma tradição reinventada.

Como afirmou certa vez o crítico Roberto Schwarz, em polêmica com o mesmo Augusto de Campos nas páginas do “Folhetim”, em 1985: “O próprio grupo concretista oferece uma ampla literatura ensaística, erudita e militante, em que se explica o sentido revolucionário de seu trabalho, com precursores nacionais e estrangeiros”.

A briga em torno de Oswald só existe porque ele foi posto no panteão dos precursores do concretismo pelos próprios concretos, que operaram igual procedimento com figuras menos conhecidas, como Sousândrade. Essa história, contudo, já é mais conhecida. É bem parecida a plumagem de Ferreira Gullar e Augusto de Campos. Não é à toa que ainda encontrem energia para se bicar.

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[Flávio Moura é jornalista e doutorando em sociologia pela USP com tese sobre o grupo neoconcreto]