Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Livres, leves, soltos

O juiz federal Antônio Campelo livrou os irmãos Romulo e Ronaldo Maiorana da acusação de terem cometido crime contra o sistema financeiro nacional. Embora réus confessos, se beneficiaram do arrependimento eficaz. E de outros argumentos mais.

O pai de uma das funcionárias da Assembleia Legislativa do Pará tentou reparar o dano causado pela filha ao erário se apresentando diante do juiz do feito para ressarcir o montante do desvio imputado a ela pelo Ministério Público do estado, na apuração dessa e de várias outras condutas ilícitas no setor administrativo do parlamento. O gesto não foi aceito. É preciso que a ação judicial siga até o seu desfecho processual para a apuração final dos crimes e a aplicação da sentença, quando então, se cabível, pode-se apresentar a possibilidade de indenização ou reparação.

Muito mais sorte tiveram os irmãos Romulo Maiorana Júnior e Ronaldo Maiorana no processo movido contra eles e outros dois sócios (Fernando Nascimento e João Pojucan de Moraes) na Tropical Alimentos (hoje, Fly), pelo Ministério Público Federal. Em sentença do dia 19 do mês passado, o juiz da 4ª vara federal, Antônio Carlos de Almeida Campelo, declarou extintas suas punibilidades. Alegou que os crimes alegados alcançaram a prescrição.

A possibilidade de punição estatal cessou porque o juiz desclassificou os delitos. O MPF acusou os dois sócios nas Organizações Romulo Maiorana de crimes contra o sistema financeiro nacional, mas Campelo enquadrou-os como crimes tributários. Como as penas aplicadas neste último caso são inferiores às do outro, a prescrição os atingiu, acabando com a possibilidade de serem punidos.

A responsabilidade final

Na sua sentença, de 16 laudas, o juiz destacou, com ênfase, que o crime já estava prescrito “antes mesmo do processo estar sob o controle do poder judiciário”. Fora arguida pela defesa “desde sua peça preambular” e reconhecida “pelo próprio MPF”. Mas, ao receber os volumosos autos (com quase 1.500 páginas), em agosto de 2008, seis anos depois que as provas foram submetidas ao MPF pela Receita Federal para a denúncia, o magistrado simplesmente iniciou a instrução: convocou audiências e aceitou a produção de provas, gerando até atritos de repercussão nacional por suas decisões. Só foi reconhecer a preliminar da prescrição três anos depois, ao sentenciar com base em tudo que foi acrescido às peças iniciais, inclusive as alegações finais das partes.

Não é o procedimento comum. O normal seria que, convencido pela preliminar dos réus sobre a prescrição, que constitui matéria de ordem pública, o julgador imediatamente extinguisse a punibilidade, pondo fim ao processo. Ao invés disso, relatou o caso até o seu último momento processual e só então decidiu pela preliminar (embora desenvolvendo seu raciocínio pelo mérito da questão), como se só então se tivesse convencido (ou sido convencido) sobre os argumentos dos Maioranas. Acabou por lavrar uma sentença polêmica.

Para se defender, os donos do grupo Liberal alegaram que o fato não é punível ou não é típico, a denúncia é inepta, por inexistência de fraude, e que, de qualquer maneira, não devia ser recebida pela justiça porque seria aplicável o mecanismo do arrependimento eficaz, anulando o crime. Não teria havido fraude porque, mesmo não aplicando capital próprio em contrapartida aos recursos recebidos da Sudam, os proprietários da Fly, conforme admitiu o juiz, durante o período de implantação e desenvolvimento do seu projeto, além de terem integralizado sua parte no capital, “injetaram recursos privados em valores que superaram” as três liberações de incentivos fiscais recebidos. E até ultrapassaram em 50% sua responsabilidade final com o empreendimento.

Desvio de dinheiro

O juiz Campelo se convenceu de que os Maioranas e seus sócios não cometeram qualquer fraude, por não constar nos autos do processo “qualquer indicativo de que os empréstimos bancários utilizados para a obtenção dos aportes de recursos do Finam [Fundo de Investimento da Amazônia, administrado pela Sudam], que não teriam sido incorporados ao projeto, tenham sido obtidos mediante uso de algum documento adulterado”.

O que os donos da atual Fly fizeram nas três situações foi tomar empréstimo bancário na véspera da liberação da Sudam, apresentando esses recursos como capital próprio e devolvendo-os ao banco emprestador no dia seguinte, pagando juros de um dia apenas pela retenção do falso capital próprio. Mas, conforme a sentença, não só repuseram o dinheiro, tirando-o do próprio bolso, como excederam em 50% o cronograma financeiro acertado com a Sudam.

Nessas condições, o único crime que podiam ter cometido (já que a Sudam, no entendimento dos Maioranas e do juiz, não integra o sistema financeiro nacional, sendo seus recursos fiscais provenientes de renúncia da União ao recolhimento de imposto, fato, portanto, tributário) seria o de desvio de dinheiro. Ou, como prevê a lei, “deixar de aplicar ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento”.

Réus confessos

Mas a própria Receita Federal reconheceu, na sua investigação, que os recursos do Finam não foram desviados. “Não houve qualquer desvio de recursos recebidos do Finam”, afirma o julgador. Logo, extinguiu-se a pretensão punitiva estatal. Os Maioranas e seus sócios, que são também seus empregados no grupo Liberal, o maior complexo de comunicação do Norte do país, continuam a desfrutar da condição de réus primários. A sentença é, no mínimo, polêmica, o que provavelmente levará o MPF a recorrer da decisão, fazendo o processo subir para o Tribunal Regional Federal, em Brasília.

Os juízes têm se dividido na hora de definir se uma agência de desenvolvimento, como a Sudam, integra ou não o sistema financeiro nacional. Uns acham que sim, outros discordam. Não é matéria pacífica. Com uma definição pelo crime tributário, os julgadores fazem de pronto a desqualificação do delito, ao contrário do procedimento do juiz Alberto Campelo, que só no final julgou pela preliminar (e adentrando o mérito).

O arrependimento é mesmo eficaz para elidir o delito? Romulo Maiorana Jr. e seu irmão Ronaldo, que é advogado, disseram desconhecer que a manobra para simular capital próprio era crime. Mas que tinham se arrependido e que trataram de corrigir o erro, aplicando até mais dinheiro próprio do que era sua obrigação. Tornaram-se réus confessos, mas isso não lhes trouxe o prejuízo consequente porque o julgador acatou a tese do arrependimento eficaz. Outro ponto muito controverso.

Na balança do Judiciário

O problema é que houve, sim, fraude. Os Maioranas e seus sócios não se limitaram a falsear a contrapartida de recursos próprios. Eles desviaram todo dinheiro das três liberações, feitas em 1995, 1996 e 1997 (a primeira delas, efetivamente já prescrita quando da denúncia pelo MPF). Disseram que utilizaram os recursos (1,2 milhão de reais, em valor da época) para a construção de um galpão onde funcionaria a fábrica de sucos regionais (sucos que nunca chegaram a produzir), mas que haviam perdido tudo porque um vendaval derrubara a estrutura.

Vendaval estranho, com um único alvo na sua trajetória. Mas desmascarado quando a Receita Federal comprovou que as notas fiscais do material de construção do galpão eram frias, fornecidas por um amigo da dupla de irmãos, que confessou o fato na investigação administrativa. Esse crime, de desvio de dinheiro público, foi comprovado, mas não constou da denúncia do MPF. No entanto, faz parte da investigação criminal.

O desfecho – feliz para os réus – desse caso, em contraste com a frustrada tentativa do pai da funcionária do poder legislativo estadual, sugere que, talvez, comparando-se os valores dos alcances de um e de outro episódio, se possa chegar à conclusão de que aí está a razão fundamental para a diferença, que continua a pesar na balança do poder judiciário. Ela pende em favor dos poderosos.

Prefeitura falha, Maiorana ganha

Em 2002, a prefeitura de Belém cobrou, pela justiça, dívida de três anos (de 1997 a 1999) de IPTU da antiga sede do jornal, na rua Gaspar Viana. A execução fiscal chegou ao fim da sua tramitação na justiça estadual no mês passado, quase 10 anos depois de ser proposta. Tanto o juiz singular quanto a câmara do tribunal sequer examinaram o mérito do pedido da procuradoria municipal.

A ação não prosperou porque os advogados da prefeitura citaram o devedor errado, caracterizando a ilegitimidade passiva, causa da extinção liminar do processo. A execução foi proposta contra Romulo Maiorana, que tinha morrido 16 anos antes, em 1986. E quase 10 anos antes de se caracterizar a primeira inadimplência do Imposto Territorial Urbano do valioso imóvel, o bem já fora transferido a quatro dos seus oito herdeiros: a mulher, Lucidea, e os filhos Roberta, Romulo e Ronaldo.

Quando iniciou a execução fiscal, a procuradoria jurídica parecia desconhecer que em 1988 a transmissão da propriedade do prédio foi registrada no cartório de imóveis, através do instrumento de formal de partilha. A partir desse momento, se tornou público, para todos os efeitos legais, que a propriedade passara de Romulo pai para seus quatro herdeiros. Além dessa prova documental, a morte do fundador das Organizações Romulo Maiorana era fato público e notório, dada a sua fama e a repercussão do seu falecimento.

O costume de não pagar

Mesmo assim, os advogados da prefeitura fizeram a citação errada. Ainda tentaram corrigir o erro crasso, solicitando a substituição processual, mas seu pedido nem foi considerado pelos julgadores em primeira instância – a juíza Elena Farag, da 25ª vara cível (em 2004), e, no grau de recurso, a 1ª câmara cível isolada do TJE, à unanimidade, tendo os desembargadores Leonardo Tavares e Elena Abufaiad como relatores (da apelação e dos embargos).

Além de perder a receita do imposto devido, que era de 102 mil reais em 2002, o erário municipal ainda responderá pelas custas processuais pagas pelos Maioranas. Esse ônus devia servir de estímulo às autoridades competentes para apurar o comportamento dos seus representantes. Eles não só iniciaram erroneamente um procedimento judicial como deixaram de se manifestar nos autos, contra-minutando um dos recursos da parte contrária, conforme observou a desembargadora Abufaiad: “Embora devidamente intimado, o município quedou-se inerte”, ela registrou na sua manifestação.

Já os Maioranas, que saíram ganhando todas, pelos erros do adversário, devem prosseguir no seu costume de não pagar IPTU. Acabam não pagando mesmo, o que diz bastante sobre sua condição de cidadãos, embora sem constituir boa moral para a coletividade.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal, Belém, PA]