Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa, o leitor e o iPad

Há pouco mais de dois meses estou com um iPad em minhas mãos. É um apetrecho, uma engenhoca, uma maquininha, um treco tecnológico realmente de encher os olhos, cativar a imaginação, transmitir sensação de posse e, além de tudo isso, nos fazer parecer mágico experiente em noite de casa cheia.


Oito meses atrás comentei neste Observatório (‘À cata de tábuas de salvação‘) o advento da nova invenção do Steve Jobs e nem me furtei à imagem daquele predestinado que desce do topo da Apple com a tábua que tudo faz e que faz tudo da melhor maneira possível. Acessar mensagens eletrônicas é simples e em quase todas as situações em que interagem com o iPad as pontas dos dedos parecem sua extensão natural. Escutar música é tão bom quanto ouvi-las no iPod touch. Há um quê de organização por compositor, cantor, gênero, capa de mídia. E a qualidade da audição está sempre rondando o nível de excelência aguardado por muitos.


Muitos aplicativos foram feitos para o iPad. Eles querem tornar ainda mais fácil o que já nasceu fácil. Existem aplicativos para você baixar apenas livros grátis, em vários idiomas. Aplicativos para interagir em redes sociais como Facebook, Orkut e Twitter. Outros para gravar suas notas e então despejá-las em alguma rede social a que esteja associado.


A revista Veja tem seu aplicativo, mas é bem ruinzinho, lerdo e visualmente imperceptível. A Folha de S.Paulo também deixou muito a desejar e não se mostrou à altura do que oferece o iPad quando o negócio é ler, folhear jornal. Pareceu uma gambiarra feita por quem não está suficiente inteirado do produto e de suas possibilidades, já que optou por adaptar a versão de sua ‘Folha Digital’ lançada há alguns meses (um ano?). A Folha parece resistente à mudança de paradigma e, como já se acha fazendo o jornal do futuro, enveredou pelo longo túnel do tempo. Mas tem o diário O Estado de S.Paulo que, em que pese meu nariz torcido para o veículo dos Mesquita, apresentou um bom aplicativo, limpo, honesto, adequado e sem aquela marca registrada de seu principal concorrente: muito marketing para pouca coisa inaugurada.


Formatos diversos


As imagens – mesmo aquelas fotos prosaicas de nossos filhos ainda pequenos e aquelas férias que ficaram boas apenas nas imagens que as retiveram – assumem cores esplêndidas, agregando os genes do LCD a cada fotografia, trazendo brilho carregado de espanto, admiração. É que há uma plasticidade, uma nuance aqui e ali do azul e do vermelho, do amarelo e do verde. e entre o claro e o escuro existem 1.844 tons e semitons, uma muralha da China por desvendar.


E quanto ao iPad concorrente pós-moderno da secular Biblioteca do Congresso americano? Os livros estão sempre expostos na vitrine, nunca estão empilhados e nunca se metem em arapucas de vendedor de livraria: são fáceis de achar. Ou melhor: são os livros que nos acham, e não o contrário.


A única estante do iPad – que pode ter meros 15 centímetros de altura ou então coisa de 199 metros de altura – forma espetáculo à parte. As cores do iPad dão uma levantada na beleza das capas e estas se movem em passe de dedos buscando sempre a melhor posição a figurar na estante. Há uma conspiração entre nossos olhos, pontas de dedos e a vontade de fazer coisas nesse território sempre inovador que é o leitor de livros da Apple. A arrumação dos livros na estante é convite irresistível a abrir de cinco a oito livros, apreciar a capa, as primeiras páginas. Mas, caso consigamos passar por este exercício muito mais estético que intelectual, veremos que nossos habituais dois neurônios possuem formidável inteligência.


Explico: com apenas 0,2 neurônio podemos aumentar o tamanho das letras, calibrar a luminosidade da página, trocar o tipo de letra – da habitual Times New Roman para Bakersville, Cochin, Verdana, Georgia e até a Palatino –, sair da camisa de força que é a justificação das páginas podendo optar por uma alinhamento mais progressista, por exemplo, bem à esquerda.


Mas se queremos ir logo ao que interessa naquele padrão, olhar o índice e começar pelo capítulo desejado, não seja por isso: basta pressionar levemente o nome do capítulo e em milionésimos de segundos teremos o diante de nós o capítulo escolhido. Com os mesmos décimos de neurônios citados podemos marcar palavras e frases, parágrafos, escolher a cor em que a marca deverá ser feita, marcar a página sem aquele anti-higiênico hábito de salivar o dedo e sem precisar amassar mesmo que levemente sua margem superior direita.


A página que mobilizará seus olhos ainda poderá ser oferecida em tons de sépia, aquele marrom clarinho que aplicado a fotos lhe dão o ar de envelhecimento. Sou leitor que não raras vezes gosto de expressar discordância com o pensamento do autor, e nesses casos posso no iPad grifar o que merece reparos, usando a cor de minha preferência, e escrevendo meus comentários. Trata-se da criação de uma nota que ficará colada ali na margem da página com a data em que foi criada. Qualquer dúvida, é só acioná-la com a ponta do dedo.


Com isso caem por terra os muitos críticos do livro digital: ‘Sou daqueles que gosta de escrever nas margens’. Eu também e faço isso com rapidez, segurança e espaço suficiente para, se for meu desejo, escrever outra página por inteiro.


O leitor dispõe também de uma lupa: você pode buscar alguma palavra ou frase no livro, e se desejar conhecer mais a palavra ou a frase pode optar por pesquisar de imediato tanto no Google quanto na Wikipédia. Neste ponto, o livro digital da Apple é imbatível e assume logo a pole position da leitura. Considerando que 99,99% dos livros em formato digital na Apple Store – ou em seu concorrente Kindle, da Amazon Books – estão disponíveis em inglês, e como nem todos no Brasil foram alfabetizados naquela língua, é importante ressaltar que o iPad aceita bem diversos formatos de textos, dentre estes nosso velho conhecido PDF.


Assim, para transferir um livro do seu computador para o aparelho basta você convertê-lo – usando os programas gratuitos Stanza e Calibre – para o formato ePub, ou já baixá-lo neste formato. O mesmo procedimento é indicado para livros ou textos em PDF. Depois é só arrastá-los de seu computador para o iPad.


Respostas rápidas


Navegar na internet não é apenas navegar, é fazer um cruzeiro pelo Caribe com direito a diária completa e a ingressos para shows inacreditáveis. É a mágica do zoom sempre esticado, abrindo e fechando dedos, alargando e encolhendo imagens, textos, ícones, cidades, ruas, quadros de museu. Em qualquer situação você pode deixar o dedo pousado um pouquinho mais sobre um ‘pedaço de texto’ e então surgirá a opção ‘copiar’.


Em outro aplicativo, como um editor de texto ou uma mensagem a ser transmitida, surgirão opções de ação como ‘selecionar, selecionar tudo, colar’. A opção por trabalhar com o iPad na vertical ou na horizontal em quaisquer de suas funcionalidades é formidável.


Para receber e transmitir mensagens eletrônicas cai o nível de dificuldade e crianças com seus longevos 4 anos de idade não terão qualquer obstáculo. O programa é simples e é o mesmo usado em computadores e macbooks da Apple. Tudo é fácil de localizar, tudo muito organizado naquele estilo meias em uma gaveta, cuecas em outras, camisetas em outras. A novidade está em seu teclado virtual. Sempre que você vai escrever alguma coisa – seja email, texto ou nota, preencher formulário etc. – o teclado se materializa como aquele gênio da garrafa sempre solícito a oferecer seus préstimos.


Considero o tal teclado a assinatura do Steve Jobs na poderosa engenhoca. É de fácil digitação, a acentuação é intuitiva, a distância entre os caracteres é de bom tamanho. E, como tudo o que é novo e que nunca antes foi usado em tais dimensões físicas, só requer prática. Explicar o teclado virtual ou mesmo o iPad não é tarefa fácil. Assemelha-se a ensinar alguém a nadar por correspondência e com o agravante de o provável aluno não contar com o auxílio de uma piscina ou ao menos de tanque d´água de 2×3 metros.


E há um mundo de jogos: do Pacman ao Avatar, do Sonic (aquele que feito bala azul vai colhendo argolas douradas com direito à musiquinha hipnótica de sempre) ao Revolution e ao Prince of Persia. Corridas de carro, partidas de pôquer e jogos nascidos do sucesso de filmes como Resident Evil pululam na Apple Store. Até um jogo com o Dr. Gregory House e com o Jack Bauer de 24 Horas estão disponíveis.


O iPad é um poderoso equipamento tecnológico, com tela multitoque e sensores como o acelerômetro, que detecta o movimento e a inclinação da engenhoca e até mesmo o ato de sacudir o aparelho. Sua tela usa uma tecnologia que permite visualizar conteúdos sem distorção de imagem quando visto em ângulos extremos. Sua bateria tem autonomia de mais que 10 horas, mesmo com exibição de vídeos. Qual o mistério? Isto porque descobri que a bateria do iPad é feita com polímero de lítio, que é um material químico mais moldável que os íons de lítio, mais utilizado em baterias de notebooks. Com uma bateria de polímero, a Apple pode moldar a bateria em torno do tablet. Ela é maior e pode guardar mais íons para recarga. Notei, como a maioria das pessoas que testaram iPad, uma velocidade impressionante na resposta de seus comandos.


Vendas em alta


Alguns problemas (e no caso não estou muito seguro se são do iPad ou deste usuário), mas me pareceram problemas:


** Comprei o iPad para ler, mas acontece que ele tem tantas opções do que fazer, ainda mais em um ambiente com acesso a rede sem fio, que a leitura de um livro se estica muito, não rende e me faz parar entre uma página e outra para conferir novos emails ou saber a última de sites como Gizmodo ou BlueBus. Quando retorno à leitura do livro invento de ficar mudando a fonte, mexendo com o tamanho dos caracteres ou graduando melhor a luminosidade da página. Ler que é bom, necas.


** Livrarias robustas no Brasil – como a Cultura, a Fnac e a Saraiva – estão engatinhando no mundo dos livros digitais. O que oferecem é de uma indigência de dar dó. Só faltam criar parceria com sites como o Domínio Público e começarem a oferecer Dom Casmurro, Iracema e a Carta de Pêro Vaz de Caminha.


** A falta de suporte do Flash no iPad poderá gerar prejuízos para os usuários. A maioria dos elementos interativos na internet, hoje, é construída em Flash, o que significa que não funcionarão no tablet da Apple.


** A falta de promessa por parte de José Serra, candidato à presidência do Brasil, de incluir um iPad como benefício extra a cada família cadastrada no Bolsa-Família. A criação do 13º salário para os beneficiários do programa já foi prometido e aumento de 10% para todos os aposentados brasileiros, também. Certamente, custaria bem mais em conta distribuir a maquininha do Steve Jobs a milhões de brasileiros do que asfaltar toda a rodovia Transamazônica em seus 4.000 quilômetros de extensão, ligando a Paraíba ao Amazonas.


O futuro do iPad parece luminoso desde sua primeira semana de existência. Passados oito meses, segundo pesquisa da Bernstein Research divulgada pela CNBC, com exceção dos telefones o iPad é o produto com maior taxa de adesão. A Apple vendeu 3 milhões de tablets nos seus primeiro 80 dias de comercialização. Totalizando 4,5 milhões no segundo e terceiro trimestre deste ano.


Segundo Colin McGranahan, analista de Bernstein Research, o iPad superará o mercado de consoles de games e celulares, se posicionando na quarta categoria de eletrônicos de consumo que mais geram receita nos Estados Unidos –na faixa de 9 bilhões de dólares. Para se ter uma ideia comparativa, os DVD venderam 350 mil unidades em seu primeiro ano no mercado e só alcançaram os mesmos números do iPad depois de cinco anos.


De acordo com a revista Fortune, as vendas de notebooks vinham aumentando desde o segundo semestre de 2009. Em janeiro de 2010, as vendas cresceram 29%. Em abril, quando o iPad foi lançado, o crescimento estava em 11%. Em julho e agosto, cresceram só 2% e 4%. O iPad está roubando mercado apenas dos computadores com Windows, contudo. As vendas de Macs, especialmente de notebooks, continuam a crescer. Isso significa que as pessoas estão abrindo a mão do Windows pelo iPad. E agora o golpe de misericórdia nos tomiguchis dos anos 1980, os netbooks: também segundo a pesquisa, a rede BestBuy informou que os iPads estão eliminando a categoria de netbooks e notebooks na loja e prejudicando a venda de TVs e câmeras digitais.


Livro inspirador


Escutei em 25.000 lugares que a Apple gosta de usar a palavra ‘mágica’ para descrever seus produtos, e eu pude sentir isso. Mas o que parece mágica é explicado com pura ciência. E uma superdose de talento e criatividade, além de perseverança. E falando em mágica e em ciência, não posso deixar de pensar que grande parte da população do mundo ainda guarda firmes raízes em Macondo, aquela cidade mítica trazida à existência por Gabriel García Márquez. Recolho de Cem anos de solidão este trecho:




‘Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.’


Antes que minha memória soçobre de vez, recolho este apontamento:




‘Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento de repórteres, microfones, câmeras de tevês, holofotes, o presidente executivo da empresa Steve Jobs havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer Cupertino, no Vale do Silício (Califórnia), com seus 52.948 habitantes. Imponentes construções traziam logomarcas espalhafatosas como Apple, Hewlett-Packard, IBM, Sun Microsystems, Symantec e Borland. Cupertino localiza-se a aproximadamente 61 metros acima do nível do mar. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Em 27 de janeiro de 2010, uma família de ciganos tecnológicos plantou sua tenda num evento da Apple em San Francisco. E com grande alvoroço de apitos, filas imensas, gente acampada nas calçadas desde a noite anterior aguardava angustiados que Steve Jobs desse a conhecer os novos inventos. Um deles recebeu o nome iPad.’

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter