Queria mesmo era escrever sobre os continentes de plástico que estão se formando nos oceanos, por não sabermos mais aonde colocar nosso lixo. Porém, como se fala muito nisso, na lei do retorno, no preço da justiça, no “aqui se faz, aqui se paga”, como quando morrem famigeradas figuras como Bin Laden, resolvi que também vou entrar nesta correnteza e aumentar o caldo com meu olhar, o de uma psicóloga. No caso de Bin Laden, o nome dele, pelo menos para o Ocidente, ficou associado de forma indelével, ao do terrorismo, como um binômio – dois nomes que se ligam ou interligam de alguma forma.
Mas e a imprensa, nessa história?
Alguém acompanha o estado de paralisia, de congelamento das vítimas depois? Será que apenas a dor, a lágrima vertida na primeira semana interessa? Serve para alavancar audiência e nos anestesiar com a repetição excessiva de laudos, de opiniões, do Extra, do Sen-sa-cio-nal. Olho na tela, na foto, na página rubra gotejando, na trilha do begê ressaltando o off. É pop up e banner com a última declaração. A Cidade fica alerta, o Brasil fica urgente, afinal, sendo bom para as partes (a minha e a do anunciante)…
“Estátuas de sal”
Trabalhei dez anos aplicando a psicologia à atividade aérea, ministrando treinamentos aos seus diversos setores e fazendo atendimento clínico também. Por conta das andanças da vida, acabei focando a abordagem e o atendimento a pessoas vítimas de Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT). Elas também me estimularam a escrever sobre a morte dos carrascos. Ou melhor, me instigaram porque estão o tempo todo me perguntando se a morte deles traz alívio aos parentes das vítimas de qualquer tragédia. Como no caso do garoto que matou várias pessoas em uma escola do Rio de Janeiro, ou até mesmo a quem não perdeu ninguém, mas se chocou ao acompanhar o que estava acontecendo.
Nestas horas, uma personagem bem antiga, porém atemporal, em seu simbolismo, sempre me vem à mente: a bíblica mulher de Ló. Ela e sua família, ao fugirem de uma cidade que estava sendo destruída, olhou para trás – e virou uma estátua de sal! Esta é a metáfora do trauma, aquilo que nos transforma em “estátuas de sal” porque nos deixa eternamente congelados, olhando para trás, para o momento em que a tragédia ocorreu e, para nosso cérebro, continua ocorrendo. Algo em nós não segue adiante porque ficou congelado, emocional e neurobiologicamente também. Quanto menos nos ocupamos desta “parte” que parou, mais pesada ela vai ficando porque outras coisas vão acontecendo e outras estátuas vão se formando, até que um dia não damos mais conta da caminhada. Usando imagens da aviação, tão presentes em meu imaginário, um dia o avião faz um pouso brusco, o bin – aquele compartimento acima das nossas cabeças – se abre, e um peso, além do permitido, cai sobre nós. Qual a proporção do dano? Ninguém pode prever…
Resgatar o que ficou paralisado
Penso que um aprendizado fundamental nesta vida, seja o de prestar atenção na bagagem que trazemos conosco e ir soltando aquilo que não damos conta de carregar, o sobrepeso emocional.
Como vou poder dizer se a morte de um gângster, de um traficante, de um Bin Laden, vivifica as “estátuas de sal” de quem ainda está congelado na situação do dia do atentado? Pergunto para meus clientes, e até mesmo ex-clientes, respondendo aos e-mails que me enviam. Meu olhar de psicoterapeuta é para as “estátuas de sal”, pois cada pessoa chocada com a tragédia formou em si mesma aquele espaço interno congelado no momento da perda.
Eu e cada um de nós precisa também da ajuda da imprensa. Precisamos de toda a ajuda possível. O mundo e as vítimas (que também nos inclui, a qualquer momento, sob qualquer circunstância) precisa de mais espaço nas colunas e matérias. E a única coisa que me ocorre é encorajá-las a entrarem neste espaço, resgatarem o que ficou paralisado, para que a caminhada continue e bem mais leve!
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[Adriana Kortlandt é psicóloga, especialista em traumas causados por tragédias, em especial acidentes aéreos, e autora dos livros Almagesto-contos anímicos e Fios da Memória]