Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Riscos sociais na economia e no conteúdo

A televisão de sinal aberto continuará sendo, por algum tempo, o principal instrumento de informação, cultura e entretenimento da maioria dos brasileiros, mas atravessa um momento de crise de conteúdo e negócios. O setor vem optando pela alternativa da venda de espaços comerciais a instituições religiosas e se apoia numa base de políticos próprios, cada vez mais forte no Congresso Nacional. É a explosão das chamadas “igrejas eletrônicas”. Também carece de revisão todo o conteúdo audiovisual brasileiro – “a centralidade da televisão na vida da população do país é razão fundamental para enfrentar os riscos sociais que ela apresenta”, reflete Suzy dos Santos, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia política da Informação e da Comunicação (PEIC). Leia a seguir sua entrevista ao e-Fórum.

O privilégio dos interesses político-religiosos

A TV aberta, em crise no seu modelo de negócios com a entrada de tantas novas mídias digitais e internet, apela, cada vez mais, à venda de espaço aos programas religiosos (incompatível com suas atribuições constitucionais). O que esse quadro representa para o telespectador, para a informação, para a cultura do país e a própria sobrevivência do setor?

Suzy dos Santos– A TV aberta brasileira se estruturou baseada num modelo dependente do Estado e com baixíssima concorrência. Desde os anos 1990s, este modelo está em crise. Não sei se é apenas devido à entrada de novas mídias ou da internet. Tenho a sensação de que tem mais a ver com a histórica concentração da publicidade em uma emissora, com apostas empresariais erradas – como por exemplo, no processo de privatização das teles e no próprio ingresso da Globo em TV por assinatura e na internet –, exagero de confiança no protecionismo estatal, em especial no que diz respeito às afiliadas locais e, também, o aumento da concorrência no próprio cenário televisivo.

Também não podemos dizer que é um modelo de negócio novo a venda ou a cessão de espaço para programas religiosos. Se olharmos a grade das principais redes no início dos anos 1980s, veremos que a Globo tinha a Santa Missa em seu lar, a TV Record/Studios Silvio Santos tinha a Missa da Capela de São Dimas e a Bandeirantes tinha os evangelistas norte-americanos Rex Humbard e Jimmy Swaggart e o Programa da Boa Vontade, da LBV. Isso sempre existiu na TV brasileira. O que houve aqui foi uma explosão desse ambiente das chamadas “igrejas eletrônicas” neopentecostais. Essas igrejas apostam fortemente no investimento midiático e, no caso brasileiro, o fenômeno é mais interessante porque elas usam uma estratégia próxima da Globo, a de ter uma base políticos “próprios”. A chamada bancada evangélica [no Congresso Nacional] aumentou expressivamente e é muito ativa no universo relativo às questões de interesse do setor. Do ponto de vista da cidadania, é claro que isso representa sérios riscos. Já tivemos vários exemplos de perseguições às religiões afrobrasileiras, também temos muitos exemplos do privilégio dos interesses político-religiosos dos radiodifusores em detrimento do interesse público.

Novelas com mocinhas más tomando surra de pais bondosos

O governo, que dá a concessão a essas emissoras, já não deveria ter incidido nisso?

S.S.– Sem dúvida nenhuma. Mas também deveria controlar o uso destas emissoras para interesses políticos, a exibição de programação que ofenda os direitos humanos. Enfim, há uma série de absurdos ocorrendo na televisão aberta e não há nenhum controle de conteúdo. O Estado brasileiro abriu mão de controlar o conteúdo midiático sem qualquer justificativa, em detrimento do mercado.

No primeiro semestre deste ano, de acordo com dados da Anatel, a TV paga teve aumento de 13,7% no volume de assinantes. Com a entrada das empresas de telecomunicações na transmissão de conteúdo audiovisual, ainda haverá chances para a TV aberta?

S.S.– Claro! Não temos nenhuma razão para acreditar que a entrada delas na transmissão de conteúdo vá baratear ou universalizar o serviço de televisão por assinatura. Tem chances de diversificar a oferta para as grandes cidades e para as classes média e mais altas, é verdade. Mas a TV aberta sobrevive de outros espaços e ainda é – e aposto que continuará sendo por algum tempo – o principal instrumento de informação, cultura e entretenimento da maioria dos brasileiros. Além disso, do ponto de vista do conteúdo, a programação nacional de TV por assinatura ainda reproduz em muito o modelo da TV aberta. Grande parte da grade de programação oferecida pelas operadoras de TV por assinatura ainda é composta por canais religiosos, canais de vendas e modelos generalistas de televisão.

A televisão aberta corre o risco de servir só para doutrinação religiosa?

S.S.– Não, vai servir também para a doutrinação política, para a venda de tapetes e eletrodomésticos, para programas sensacionalistas, para novelas com cenas de mocinhas más tomando surra dos pais bondosos – naturalizando a violência contra a mulher e a criança como solução para os conflitos domésticos, para a hipermercantilização da infância, para manifestações preconceituosas de toda espécie e para a tentativa de formação da opinião pública de acordo com os interesses dos radiodifusores. Ou seja, não creio que a questão religiosa seja um problema isolado no conteúdo audiovisual brasileiro. Naturalmente, é um problema sério, e não deve ser negligenciado, mas tem que ser pensado globalmente: a centralidade da televisão aberta na vida social brasileira é razão fundamental para enfrentar os riscos sociais que ela apresenta. E, infelizmente, eles são muitos.

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[Da Redação do FNDC]