O soberano está além do bem e do mal. Ele se inscreve soberanamente na lei, mas não é objeto de jurisdição alguma, pois a lei não pode servir nem para puni-lo, nem para limitá-lo. Ele é tanto mais presente quanto mais ausente; é presente em seu poder que se espalha e se apresenta, como bode expiatório, no rosto da miséria, pois ele sanguessuga os miseráveis, os sacrifica diariamente; e ao mesmo tempo, como contraponto ou interface ou disfarce, ele aparece de forma onipresente em cada gesto de poder, o mínimo e o máximo.
Ele aparece, eis o paradoxo, inclusive nos miseráveis, sob a forma de alienação, de machismo, de preconceito, de mandonismo, de isolamento; e um tanto de outras. Ele aparece igualmente nos poderes instituídos, o judiciário, o legislativo, o executivo; no sistema de saber; nas empresas privadas, no poder dos bancos, dos magnatas, nas festas dos burgueses, no estilo dos famosos, na fachada das mansões; nas joias das mulheres; na medicina; nas marcas das mercadorias, nos rótulos; nos estilos de vida, em cada programa de rádio, de televisão; em cada portal de internet, artigo de jornal, de revista, inclusive, de alguma forma, neste.
Onde existe poder hierárquico, ainda que moribundo, ainda que demente, ainda que alienado, ainda que contra si mesmo, lá está o soberano e é por isso que é possível dizer que o soberano se ausenta de tanto estar presente; é transcendental de tão imanente; é abstrato de tão concreto; é imparcial de tão parcial; é objetivo de tão subjetivo; é isento de tão não isento; é impessoal de tão pessoal; coletivo de tão individual, sem contradição alguma; sem incoerência, pois é assim, ocupando ao mesmo tempo os dois lados do pêndulo de qualquer sistema de oposição, que o soberano dá sentido ao mundo, ao absurdo, ao inaceitável, através do sentido que sentimos, ressentimos, no mundo.
Prova viva
O soberano não existe de tanto que existe. É por isso que ele não é uma pessoa apenas. Não existe o soberano: ali está ele. Existe, sim, a soberania: ali está ela, aqui, acolá. O soberano se enche no mundo e se enche de mundos, de cada um de nós, nos nós de nós mesmos, através de cada identidade nossa. É por isso que o soberano está na sua falta também. É por isso que ele está no pobre, na mulher, no negro, no índio, no latino, no asiático, no homossexual, na criança porque é preciso não existir em algo ou alguém para que o soberano exista em algo e alguém.
O soberano nos rouba a todos o melhor da gente: a nossa infinita faculdade de nos inventar, de inventar outros mundos, não soberanos. O soberano é o ladrão-mor, o parcial-mor, o subjetivo-mor, o pessoal-mor, o ilegal-mor, o individual-mor; o criminoso-mor, o pedófilo-mor, o psicopata-mor, o paranoico-mor, o corrupto-mor, o mentiroso-mor, o serial-killer-mor, o genocida-mor, o indiferente-mor, o hipócrita-mor; o estuprador-mor, o vital mortal-mor, embora, de tanto ser, ele não é, pois não tem carteira de identidade, não assina seu próprio nome, senão indiretamente, em lugar algum. O soberano não tem endereço próprio: todos os endereços lhe pertencem, soberanamente.
O soberano brinca com o concreto e o abstrato, debocha de nossa burrice, insensatez ou de nossa doença de soberania, que é esta em que ele fala, deseja e age através de nós, mesmo quando pensamos que não é com a gente. O soberano traveste o tempo todo; é legião. As cadeias do mundo todo estão cheias de travestidos de soberanos, pois ele despista-nos e, moleque travesso, encarna o mal precisamente nas maiores vítimas dele, da soberania, do mal.
Através de um efeito de ilusionismo, o soberano – este mal absoluto que fazemos com a gente, com os outros e com o mundo – nos instiga diariamente a identificar o mal nos condenados da terra, no pobre; e em déspotas que se impõem diretamente sobre estes, os pobres, na periferia do soberano sistema-mundo. É aí que, costumeiramente, caímos na trama de uma das infinitas armadilhas da soberania, quando identificamos o soberano em casos isolados, caricaturais, seja em ditadores, seja em pobres coitados, nascidos roubados, tomados, sequestrados, pela soberania. É por isso que todo pobre é roubado, porque todo pobre é a prova viva, em sua falta, de que a soberania vive de roubar, de parasitar. É igualmente por isso que todo pobre só tem uma saída: abandonar o soberano em si e fora de si, inventando-se como não pobre e como não rico.
Inverter a leitura
O soberano é esperto de nos surpreender, de invejá-lo. No capitalismo neoliberal, que é o que vivemos soberanamente, ou sacrificadamente – dá no mesmo –, o soberano nos ilude que somos livres para escolher, para desejar. O soberano nos diz: seja o seu laissez-faire, o que importa é o desejo; seja diferente, não se engesse com coletivismos toscos: escolha a soberania, esse poço sem fundo no qual nadamos e nos afogamos, naufragamos, ainda que acreditemos que nossa soberana escolha individual nos proteja, nos garanta, nos beneficie, pois a soberania multiplica as opções e nos seduz a comprá-la, alegremente, orgulhosamente, desde que, é claro, tenhamos dinheiro, embora, mínimo que seja, sempre há dinheiro para comprar a soberania, centavos ou esmolas de soberania.
Por isso saímos por aí, a comprá-la, livremente, como escravos.
O soberano é cara de pau. Pedro, o evangelista, foi um amador culpado e impotente, com seu triplo perjuro, quando disse três vezes que não conhecia Cristo, no momento do sacrifício deste, pela soberania romana. O soberano mente falando a verdade e fala verdade mentindo, sem distinção. Ele acredita soberanamente em suas mentiras, que se tornam, por decreto não decretado, soberanas transcendentais verdades.
É por isso que é possível dizer, sem medo de errar, que os Princípios Editoriais das Organizações Globo nada mais são que uma cara de pau sem tamanho; uma pretensão de soberania cafajeste, cínica, tanto mais ridícula quanto mais se espalha por toda sua programação, embora a sua simples existência, em forma de redação disponibilizada ao público em geral, justificando-se, demonstra que a soberania global está sofrendo uma crise de identidade qualquer, porque o verdadeiro soberano não precisa mentir para falar a verdade, escrevendo suas mentiras e disponibilizando-as. Ele simplesmente fala a verdade, mentindo, sem precisar de subterfúgio algum que não seja o do seu próprio direito de mentir cotidianamente, indiferentemente, como inquestionável e injustificável verdade.
Considerando, a propósito, que a melhor forma de ler as transcendentais mentiras da soberania é invertendo o jogo já jogado que ela, soberanamente, nos enfia pela goela abaixo, para ler corretamente os Princípios Editoriais das Organizações Globo, basta inverter o jogo, lendo-os ao contrário, de modo que, onde se lê isenção, leia-se, com todas as letras, parcialidade despótica; onde se lê objetividade, leia-se, com toda isenção, direito soberano ao uso e abuso de subjetividades criminosas; onde se lê que é preciso se opor aos subjetivismos, sobretudo da internet, leia-se, sem mais delongas: é preciso se opor à liberdade de expressão, às tentativas justas e urgentes de democratização da comunicação de massa, transformando-a em democracia sem massas, porque sem soberano, porque tecida e entretecida por justiças plenas; porque dotada de infinito amor à vida; e não de finito e desmedido sequestro dos princípios vitais, os únicos que, coletivamente, democraticamente, não mais permitirão a auto-soberania global dos parasitas da vida, com seus privados – ultra-subjetivos – soberanos monopólios da falsificação e da mentira.
***
[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]