Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Os compromissos públicos da Globo

Em busca de maior transparência em suas ações, as Organizações Globo, principal grupo de mídia do país, publicou em no sábado (6/8) um documento com os Princípios Editoriais que regem o seu conglomerado de veículos de comunicação (ver remissões abaixo). O texto é apresentado por uma carta assinada pelo presidente do grupo, Roberto Irineu Marinho, e pelos vice-presidentes João Roberto Marinho e José Roberto Marinho. A carta informa que estes princípios sempre foram seguidos intuitivamente nas redações, mas agora foram formalizados em um código.

De acordo com a carta, a consolidação da Era Digital levou a esta normatização. Frente à avalanche de dados que circula na rede, é necessário diferenciar o jornalismo produzido por profissionais das informações publicadas por cidadãos. Outro objetivo da divulgação dos Princípios Editoriais é facilitar o julgamento do público sobre o trabalho dos veículos. Assim, qualquer cidadão pode verificar se “a prática é condizente com a crença”. O texto fala sobre isenção, correção e agilidade; a postura do jornalista diante das fontes, do público, dos colegas e do veículo para o qual trabalha; e também sobre os valores básicos do jornalismo. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (16/8) pela TV Brasil discutiu a divulgação destes princípios e os próximos passos na busca do diálogo com a sociedade.

As Organizações Globo foram convidadas a participar do programa, mas não enviaram representantes para o debate. Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro Leonel Aguiar, doutor e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor do programa de pós-graduação em Comunicação e coordenador do curso de Jornalismo da PUC-Rio. Em São Paulo, participaram os jornalistas e professores Rogério Christofoletti e Eugênio Bucci.

Além de apenas publicar

Christofolettié pesquisador do departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Criou o Monitor de Mídia, em Santa Catarina, e foi um dos fundadores da Rede Nacional dos Observatórios de Imprensa (Renoi). Professor-doutor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Bucci é diretor do curso de pós-graduação em Jornalismo com ênfase em direção editorial da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). É colunista do jornal O Estado de S.Paulo e também deste Observatório.

Em editorial, Dines destacou que o funcionamento da indústria jornalística é garantido pela Constituição. “Em troca da garantia de expressar-se com absoluta liberdade, as empresas jornalísticas têm obrigação de assumir publicamente seus deveres. Sem transparência, a imprensa não pode pretender a denominação de quarto poder”, disse. Para Dines, a publicação dos Princípios ocorreu em um bom momento, pois, semanas antes, a credibilidade da imprensa fora gravemente abalada pela conduta criminosa do grupo de mídia News Corp., do magnata Rupert Murdoch, no Reino Unido. “A divulgação dos Princípios Editoriais do grupo Globo constitui um grande avanço, mas este avanço poderia ser mais significativo e mais eficaz se, além da divulgação do documento, houvesse também um interesse em debatê-lo.”

No debate ao vivo, Dines chamou a atenção para o fato de que esta é a primeira vez que uma empresa jornalística brasileira publica seus princípios editoriais e comentou que este movimento pode trazer mudanças positivas para o setor de mídia. Para Eugênio Bucci, o documento constitui uma notícia que deixa os cidadãos otimistas sobre a responsabilidade dos grupos de jornalismo diante do público. Bucci explicou que no Brasil há diversos códigos de conduta e citou o caso de O Globo, que tem um Manual de Redação assinado pelo jornalista Luiz Garcia. No entanto, esta é a primeira vez que um grupo que reúne órgãos de imprensa com linguagens e plataformas diferentes elabora um único documento com Princípios Editoriais.

Compromisso com o público

“As Organizações Globo, ao publicarem este documento, mais que um debate, assumem um contrato com o público. O que está sendo dito é o seguinte: ‘nós nos comprometemos a apurar, editar, veicular o nosso noticiário dentro destes cânones que nós adotamos aqui e se nós nos desviarmos por algum motivo você, telespectador, leitor, pode nos cobrar porque este é o nosso compromisso’”, sublinhou Bucci. Dines comentou que apesar de representar um avanço, apenas a publicação de princípios editoriais não é suficiente para uma relação transparente com a sociedade.

Dines chamou ressaltou que o documento não cita diretamente a necessidade de pluralismo na empresa. “Eu senti, do ponto de vista metodológico, falta do valor do pluralismo neste documento”, disse Bucci. O jornalista comentou que recentemente, nos Estados Unidos, surgiu um código com nove pontos e um deles recomendava a diversidade, inclusive, dentro das redações. As equipes de jornalistas deveriam ser compostas por profissionais com visões distintas e pessoas de origens diferentes.

Para Bucci, esta falha nos Princípios Editoriais das Organizações Globo não diminui o valor do documento. Bucci recomenda enfaticamente a todos os interessados no assunto que estudem o texto porque esta peça contribui para a clareza do Jornalismo praticado no Brasil. Para Bucci, os consumidores deveriam participar de todas as instâncias do processo de produção da informação.

Leonel Aguiar avaliou a iniciativa como um avanço porque motiva a sociedade a debater o Jornalismo em um momento de mudanças profundas na produção da informação com as novas tecnologias. O professor ponderou que apesar de as Organizações Globo serem pioneiras porque publicaram seus princípios editoriais, ainda não adotaram em nenhuma de suas plataformas canais de comunicação com o público, como ouvidorias ou ombudsmans. “É preciso criar estes canais, uma via de duas mãos”, disse Leonel Aguiar. Para o professor, mesmo que a empresa não estimule esse tipo de participação, os movimentos sociais que se propõem a discutir e criticar a mídia devem destrinchar o documento para poder cobrar o cumprimento das determinações estipuladas no texto.

Que jornalismo a sociedade quer?

Dines questionou se a pressão das mídias sociais pode ter levado a um movimento de autodefesa da imprensa tradicional. Para Leonel Aguiar, é importante que a sociedade comece a discutir qual é o tipo de jornalismo deseja uma vez que, na internet, qualquer cidadão pode publicar informações. O professor ressaltou que logo no início do texto a empresa se posiciona sobre o que significa o jornalismo para as Organizações Globo. “A própria definição do que é o jornalismo, para que serve o jornalismo em uma sociedade democrática, já é objetivo de disputa política, de disputa ideológica”, explicou o professor.

Na avaliação de Rogério Christofoletti, os Princípios Editoriais das Organizações Globo devem ser apenas o primeiro passo de um processo: “Implementar o documento, tirá-lo do papel, fazer com que funcione, não cabe apenas à emissora. Cabe também ao seu público para cobrar se agilidade, isenção e correção – que são os três atributos propostos como atributos de qualidade de informação jornalística – estão se refletindo nos veículos de um grupo, de uma organização tão poderosa”. A publicação dos princípios, na visão do professor, é tardia, já que fora do Brasil, outras empresas do porte das Organizações Globo, como a BBC e a Reuters, elaboraram textos semelhantes.

“Era mais do que o momento de chutarem a bola para a frente. E, agora, o jogo pode começar”, disse Christofoletti. A intenção do documento é renovar um compromisso de maior continuidade com o público. O professor avalia que o movimento de publicação de um documento como esse está cercado da emergência de diversos valores, como a transparência de processos e procedimentos e critérios.“Transparência – ou, como dizem os americanos, accoutability, uma prestação de contas, uma forma de você ser mais claro nos seus procedimentos – tem se tornado um valor intangível para a governança dessas empresas e para o público que elas estão servindo”, disse o professor. Christofoletti acredita que o processo é irreversível, mas tem dúvida se as Organizações Globo estariam dispostas a revelas “suas entranhas” em um debate com a sociedade.

Mídia laica

O Observatório tambémdiscutiu a laicidade dos canais de televisão, que são concessões públicas. Bucci ressaltou que as Organizações Globo assumem no documento que o Jornalismo não pode se deixar influenciar por causas religiosas. Dines comentou que é importante que o conglomerado de mídia se declare independente de confissões religiosas e admita o pluralismo religioso, mas ressaltou ser longo o caminho até que o conjunto de empresas esteja distanciado de influências religiosas. Para Christofoletti, esta é uma questão cada vez mais premente na mídia brasileira: “Uma forma de coronelismo eletrônico que está acontecendo no Brasil é justamente o de caráter religioso”.

Na opinião de Christofoletti, em um país com tamanha diversidade religiosa, tomar partido de uma confissão é privilegiar um tipo de público e se indispor com outros. “Ao colocar no documento que há um compromisso com a laicidade, ela de alguma maneira coloca na praça, coloca na rua, a disposição de ser cobrada quando efetivamente não o for.” O professor insistiu que o documento é irreversível porque a partir de agora as pessoas podem e devem discutir e buscar uma aproximação maior com os veículos: “É isso que está em jogo e que é necessário na democracia no Brasil, nas relações entre mídias, os poderes e os públicos”.

 

Leia também

Princípios editoriais – Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho

O mais importante é o que não foi dito – Carlos Castilho

Organizações Globo abrem-se ao debate – Alberto Dines

Os valores da Globo – Luciano Martins Costa

Diretrizes não alteram modo de fazer jornalismo – Rogério Christofoletti

Pontos dos Princípios reforçam dúvidas – Venício A. de Lima

 

O dever das empresas jornalísticas

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 606, exibido em 16/8/2011

O jornalismo é um serviço público prestado por uma indústria, a indústria jornalística, a única cujo funcionamento é garantido pela Constituição. Em troca da garantia de expressar-se com absoluta liberdade, as empresas jornalísticas têm obrigação de assumir publicamente seus deveres. Sem transparência, a imprensa não pode pretender a denominação de Quarto Poder.

Em grande estilo, as Organizações Globo apresentaram há duas semanas os seus Princípios Editoriais. Os acionistas não poderiam ter escolhido melhor momento já que, nas semanas anteriores, a opinião pública mundial acompanhou estarrecida as revelações sobre os procedimentos indecorosos e ilegais praticados por um dos maiores grupos midiáticos do mundo, a News Corporation, da família de Rupert Murdoch.

Ao escancarar a ineficiência da entidade de autorregulamentação da imprensa inglesa, o escândalo Murdoch chamou a atenção para a necessidade de um rigoroso acompanhamento dos procedimentos jornalísticos. A observação da imprensa deixa finalmente a condição de exercício crítico, “idealista”, para converter-se numa função pública efetiva, precursora de um legítimo contrapoder.

A divulgação dos Princípios Editoriais do Grupo Globo constitui um grande avanço, mas este avanço poderia ser mais significativo e mais eficaz se, além da divulgação do documento, houvesse também um interesse em debatê-lo. As Organizações Globo não se mostraram interessadas em levar adiante o processo. Cabe a nós fazer as indispensáveis cobranças. Este Observatório da Imprensa foi criado justamente para isso.