Não mais o Cristo Redentor. O abraço de sua estátua faz tempo que é insuficiente até para os que podem contemplá-lo de onde moram. Ele não pode redimir mais nada. Afinal, não está ali para substituir o trabalho dos homens, nem as responsabilidades políticas de ninguém. O cartão postal do Rio foi a Rocinha. A semana inteirinha.
O signatário passou nas imediações da Rocinha, semana passada, a caminho da Barra. Cadê coragem para entrar lá, subir o morro? Aliás, seria permitida a subida suicida? Taxistas ou motoristas particulares, todos diziam o mesmo, com aquele ar entre tranqüilo e precavido do carioca: ‘Fosse o senhor, subia não!’
E passei a ouvir de populares a confirmação das versões da imprensa, mas com uma variação esquisita. A amostragem colhida difere dos entrevistados da Globo, em que o medo, o pânico e o desespero são dados como única realidade. Não, os cariocas, onde quer que fossem inquiridos, diziam mais ou menos o seguinte: ‘É sempre assim; a Rocinha fica muito perto da Zona Sul, é só por isso que estão fazendo este estardalhaço todo; em outras favelas dá-se o mesmo quase todos os dias, mas como não atrapalha a Zona Sul…’
Em suma, o caso Rocinha foi tratado também como febre do organismo Rio, do organismo Brasil, já que o Rio continua sendo a capital cultural do país. Tudo ali obtém repercussão nacional. Pois as gírias de Ipanema não se espalham logo pelo Brasil inteiro?
Pressupostos equivocados
Mas a mídia está de parabéns. Salvo pequenos equívocos – talvez o de noticiar a violência urbana brasileira como espetáculo seja o principal – no caso dos graves eventos da semana passada, o caso Rocinha recebeu tratamento digno de figurar nas tantas páginas heróicas de revistas e jornais.
É, aliás, o que se depreende da coluna do ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, que deu sua opinião, mas trouxe entrevistas muito pertinentes.
Como a de Carlos Costa, coordenador de um programa de Segurança Pública e Direitos Humanos de uma organização não-governamental, o Viva Rio. Psicólogo e estudante de Jornalismo, ele mora na Rocinha. Foi ele quem forneceu a vinheta da entrevista: ‘A imprensa aliada’. Disse: ‘A imprensa ajudou a proteger, a denunciar, a pressionar as autoridades’. Mas fez uma declaração preocupante, por sintetizar as práticas dos traficantes: ‘Eu tenho cuidado no que eu vou falar, não falo sobre o que não me diz respeito’. É fácil deduzir o que é que para um estudante de Jornalismo não lhe diz respeito. Está imposta a silenciosa censura do tráfico. Silenciosa? Em termos. O caso do jornalista Tim Lopes, assassinado depois de sofrer torturas das mais cruéis, ainda está fresco na memória de todos. Ou deveria estar.
Jaílson de Souza e Silva, professor universitário, discordou na mesma página do ombudsman. Aliás, que bela metodologia! Marcelo Beraba fez as mesmas perguntas aos dois entrevistados e obteve respostas muito diferentes. O chapéu desta segunda entrevista foi ‘Cobertura espetaculosa’. Jaílson disse coisa muito pertinente. Que a imprensa parte de pressupostos equivocados, como o de fazer de conta que ‘a guerra é da Rocinha, quando está acontecendo em várias favelas e há anos!’ Foi também esta a impressão que colhi ao conversar com várias pessoas, no Rio, semana passada. Havia uma unanimidade nas respostas: ‘O senhor sabe por que está este estardalhaço todo? Porque a Rocinha está no caminho da Zona Sul e da Barra. Em outras favelas talvez seja ainda pior, mas não ficamos sabendo porque a imprensa se cala, não atrapalha os grã-finos’.
A fraude das ‘comunidades’
Alberto Dines acertou o alvo ainda no título de sua coluna para o Jornal do Brasil, sábado, dia 17: ‘Brasil, capital Rocinha’. Domingo e segunda-feira, a coluna continuava repercutindo nas cartas dos leitores. Um deles, Walter Gonçalves, depois de endossar a perspectiva adotada por Dines – ‘exibição permanente da incompetência política e da corrupção entranhada’, escreveu Dines – tira conclusão amarga: ‘Continuaremos, portanto, reféns dos bandidos e dos usuários’. Pois é, mas até quando? Ou não há mais esperança? Será que o medo já venceu a esperança, de fato?
O Estado do Paraná trouxe domingo, em primeira página, coisa rara em nossa imprensa, charge de Dante Mendonça que contracenava com a perspectiva de Dines. O presidente Lula aparece com uma enxada no ombro esquerdo, um regador está ao lado do canteiro do Palácio do Planalto exibindo as flores vermelhas em forma de estrela do PT, que a primeira-dama cultivou, confundindo o local com propriedade sua ou do partido. O título da charge: ‘A Rocinha da capital federal’. Perfeito. A ambigüidade da denominação – rocinha é, com efeito, uma pequena roça, como, aliás, Dines explica em seu artigo, uma rocinha que se estendeu rumo à Gávea – foi explorada para obter uma fresta humorística, presente também no ar blasé do presidente, vestido de macacão azul e camisa branca imaculada. Para dizer que o jardineiro ainda não começou a trabalhar?
Também a revista Veja, que deu capa a problemas cardíacos – que ironia! Terá sido homenagem aos habitantes da Rocinha? – e chamada na costumeira faixa, à esquerda da identificação da revista, à matéria ‘Banditismo nas favelas: a demagogia que impede o ataque ao problema’. O artigo, assinado por Ronaldo França, questiona a habitual denominação de comunidade: ‘Definir os moradores de favelas e bairros pobres como ‘comunidades’ é uma fraude. (…) Há mais identidade entre os moradores do Leblon ou de Copacabana do que entre os habitantes da Rocinha. Não ocorre a ninguém, porém, chamar esses bairros chiques de comunidades’.
Guerra civil é diferente
A revista Época tomou caminho semelhante. Deu capa a Amyr Klink e chamada lateral a ‘Inferno no Rio de Janeiro’. Lá dentro, o resumo da matéria está em destaque, com o título: ‘Dois traficantes disputam o controle de uma favela, um secretário pensa nas eleições e o Rio vive o caos’. O título: ‘A guerra de Dudu e Lulu’.
Houve, porém, um emblema da guerra. Foi a foto de um cadáver num carrinho de mão. Fernando Gabeira pediu respeito aos mortos. Carlos Heitor Cony lembrou episódio quase onírico da infância, em que pediu para ser carregado em veículo semelhante, dando uma voltinha. E celebrou a invenção da roda, que posta no lugar do homem que ia na frente, transformou a liteira em carrinho.
Em resumo, mesmo com falhas apontadas, a imprensa mostrou ao Brasil e ao mundo que os trágicos acontecimentos da semana passada na Rocinha, perfilados junto às invasões do abril vermelho do MST, ajudam a esclarecer que o país, paradoxalmente, não está em guerra civil, apesar de todos esses quadros sinistros.
É verdade que traficantes e policiais foram mortos. Mas guerra civil é bem diferente.
Agenda positiva impossível
De todo modo, os investidores externos devem estar colocando as barbas de molho. E, ao primeiro sopro de outra brisa, provavelmente partirão com sua bolha financeira para outras paragens. Nossa crise urbana virou sismógrafo faz tempo. E o cartão postal do Rio já é outro.
Como outro é o do Brasil. Não que nos caluniem, ou que a imprensa exagere. Se transformarmos o anuário do IBGE em cartão postal veremos figuras bem diferentes das habituais. O inferno toma conta da Rocinha e de outras favelas. Mas a faxineira é encontrada num celular. A modernidade ainda luta para se impor.
Vista de outro ângulo, a crise brasileira lembra a Chicago dos anos 30. Precisamos vencer a anomia. O Estado sumiu, não apenas das favelas. O Estado abandonou a todos, não apenas as periferias. As carências essenciais – saúde, escola, estrada, segurança – se avolumam e o Estado não demonstra nem interesse nem competência para resolver os graves problemas que a mídia espelha. Assim, uma agenda positiva é impossível. Se existisse, seria falsa.