Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e cronista. Tem seis livros publicados. O mais recente, O Tempo e o Cão, foi lançado em 2009, pela Boitempo. Nele, aborda o significado da depressão como sintoma psíquico da sociedade contemporânea. Formada em Psicologia pela USP, durante muitos anos se dedicou exclusivamente ao jornalismo cultural. Foi editora do Movimento, jornal que, ao lado do Opinião e d´O Pasquim, foi um dos mais importantes órgãos da imprensa alternativa durante o regime militar. Participou também da fundação do jornal Em Tempo e escreveu como freelancer para veículos, como Veja, IstoÉ e Folha de S.Paulo.
Em 1979, Maria Rita decidiu fazer mestrado em Psicologia Social. Sua tese: O Papel da Rede Globo e das Novelas da Globo em Domesticar o Brasil Durante a Ditadura Militar. Em 1981, começou a atender pacientes – e nunca mais parou. Em 1997, doutorou-se em psicanálise pela PUC-SP com uma pesquisa que resultou no livro Deslocamentos do Feminino – A Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade (Imago, 1998).
Nos últimos oito meses, manteve uma coluna quinzenal no Caderno 2, em O Estado de S. Paulo. Nesta quarta-feira (6/10), ela foi demitida depois de ter escrito o artigo ‘Dois Pesos’, publicado no sábado (2/10), onde abordou a ‘desqualificação’ dos votos dos pobres. Em entrevista na manhã de quinta-feira (7/10) a Bob Fernandes, do Terra Magazine, ela denunciou. ‘Fui demitida pelo jornal o Estado de S. Paulo pelo que consideraram um `delito´ de opinião (…) Como é que um jornal que anuncia estar sob censura pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?’
Em entrevista ao Viomundo, Maria Rita detalha os bastidores.
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‘Pode ficar tranquila.’ Eu fiquei
Na terça-feira, começaram a circular na internet boatos de sua demissão. Antes, em algum momento, você foi alertada sobre ‘problemas’ com os seus textos?
Maria Rita Kehl – Nunca. Foi o que eu argumentei com a editora do Caderno 2, que me convidou para escrever a coluna. Na verdade, ela me chamou para escrever sobre psicanálise. Argumentei que só sobre psicanálise conflitava com o meu consultório. De vez em quando, disse-lhe, poderia escrever sobre o tema, mas eu gostaria mesmo era de escrever sobre tudo, inclusive política, assunto que me interessa muito. Ela aceitou.
Essa conversa foi…?
M.R.K. – No final do ano passado, mas eu só comecei a escrever em fevereiro deste ano. Aí, fui escrevendo. Cada vez mais sobre política, pois ficava cada vez mais apaixonante. Eu já fui jornalista, tenho uma cabeça muito política também… Após cada artigo, eu sempre perguntava: ‘E, aí, tudo bem?’ Ela: ‘Tudo bem.’ Desta vez foi engraçado porque eu perguntei: ‘Tudo bem? Será que eles não vão pedir a minha cabeça?’ A resposta que veio: ‘Não vão, pode ficar tranquila.’ Eu fiquei. Imagino que a editora não iria me enganar…
‘Só poderia escrever sobre psicanálise’
Quando soube dos ‘problemas’ com os seus artigos?
M.R.K. – Na terça [5/10]. Recebi um telefonema muito constrangido de que a coisa tinha ficado muito feia… Cartas de leitores estavam reclamando muito da minha presença no jornal… Tinha gente do Conselho Editorial muito enfurecida… A situação estava muito difícil. Ela lembrou que a ideia inicial era que eu escrevesse sobre psicanálise… ‘Bem, posso tentar escrever mais sobre psicanálise… Mas nunca mais escrever sobre política, isso não, isso eu não aceito.’ Até porque o período em que o tema é mais polêmico é agora, depois relaxa… Ela disse que iria conversar novamente com o Gandour [Ricardo Gandour, diretor de conteúdo do Grupo Estado], que eu não conheço pessoalmente.
Aí, aconteceu uma coisa que eu não sei explicar, é um mistério. Mas acho que partiu de dentro do jornal, de alguém que ouviu essa conversa. Uma hora depois já tinha gente me ligando para saber se eu tinha sido demitida.
O que a leva a suspeitar de que alguém do Estadão tenha passado a informação adiante?
M.R.K. – Foi um detalhe da nossa conversa [entre a editora e Maria Rita]. Só alguém de dentro do jornal, que tinha ouvido a editora conversar comigo, tinha a informação… Tanto que o boato foi de que eu ‘estava proibida de escrever sobre política, só poderia escrever sobre psicanálise’.
‘Minha demissão virou top10 do Twitter’
Você pensou em divulgar?
M.R.K. – Eu não tinha nenhum interesse em começar a divulgar, enquanto não tivesse a resposta. Eu não poderia criar um escândalo sem antes conhecê-la. Acredito que ficou para eles [direção do jornal] a impressão de que fui eu que fiz toda a movimentação na internet. Até quis tornar público. Não fiz. E não porque sou boazinha. É porque não tinha nenhum interesse em divulgar antes de ter a resposta final do jornal.
Nessa quarta [6/10], depois da reunião que a editora teve com o Gandour, veio a resposta. Gandour disse que por conta da repercussão, a minha posição havia ficado insustentável, intolerável.
A repercussão na rede da sua demissão foi apenas pretexto…
M.R.K. – É, a coisa já não estava boa. E por ter tido muita repercussão, ficou, segundo o jornal, insustentável. É como se eu tivesse organizado uma passeata petista na frente da redação com bandeiras vermelhas, com ameaça de exigências. A minha demissão virou top10 do Twitter. Eu não esperava. Fiquei atônita. Virou um acontecimento. A minha coluna era quinzenal… Eu não sou Jânio de Freitas nem nada… O fato é que virou um acontecimento na internet com muitas acusações contra o Estadão.
‘Que liberdade de expressão é esta?’
O seu trabalho foi censurado, concorda?
M.R.K. – A palavra censura não é boa. No meu conceito, censura seria você não pode escrever sobre isso ou aquilo, corta uma linha aqui, outra ali… O que o meu caso demonstrou é que o jornal não permite uma visão diferente da do jornal nas suas páginas. É isso. Essa é dita imprensa liberal. As grandes empresas que controlam a informação no país estão nas mãos de poucas famílias… Teoricamente, seriam imparciais, dando voz ao outro lado, só que elas têm um posicionamento muito claro de que não são imparciais. Veja o meu caso. O meu artigo é assinado, não estou falando pelo jornal. Mas nem isso cabe.
Na verdade, os grandes veículos se dizem imparciais, alardeiam isso para a sociedade, só que a prática é oposta…
M.R.K. – Eu acho honesto que o jornal assuma uma posição. É pior dizer que é imparcial e dar a notícia só com um lado. Isso confunde muito mais o leitor. É pena que não tenha gente com dinheiro suficiente para apoiar outros candidatos… Um grande jornal que apoie a Dilma, um grande jornal que apoie a Marina, um grande jornal que apoie o Plínio… Na verdade, todos os jornais estão apoiando o mesmo candidato. Esse é o problema da política brasileira, da burguesia brasileira, da concentração do dinheiro na sociedade brasileira… Os donos dos jornais são parciais, mesmo… Ninguém é imparcial. Mas, para que os leitores sejam adequadamente informados e se posicionem, é fundamental ter o outro lado. Infelizmente, o que os donos dos jornais revelam é que não cabe voz a outra posição, nem mesmo em artigos assinados. Que liberdade de expressão é esta?