Frequentemente, alunos de Jornalismo ou de Comunicação Social me perguntam sobre o funcionamento das redações dos principais jornais, rádios e TVs no Brasil. A curiosidade envolve, basicamente, dois aspectos: como, na prática, a pauta é definida e como colunistas/comentaristas decidem sobre os assuntos que vão abordar. A dúvida é se há ou não efetiva liberdade nestas escolhas.
A demissão da colunista Maria Rita Kehl de O Estado de S. Paulo propicia uma explicação clara e ainda complementada com exemplo sobre o assunto. Um lamentável exemplo é bom que se diga.
Ao publicar o artigo ‘Dois pesos’ (2/10) Maria Rita infringiu a ‘regra de ouro’ da liberdade de empresa no Brasil: tratar de um tema que não agrada à direção do veículo e, sobretudo, de externar posição contrária a de seus proprietários.
Se ela fosse repórter, provavelmente o tema não teria virado sequer pauta e nem se transformaria em notícia ou reportagem. Morreria entre as paredes da redação. Assim, aos poucos, o repórter vai aprendendo o que pode ou não ser notícia. Não consta dos manuais de redação, mas uns aprendem rapidinho. Outros demoram e poucos nunca entendem a lição. Preferem mudar de veículo ou até de atividade. Desta maneira, centenas de temas importantes para a população brasileira deixam, cotidianamente, de virar notícia. É por isso, também, que cada vez mais informação inútil (para dizer o mínimo) ocupa espaço/ tempo na mídia, impressa ou eletrônica.
A atitude ‘digna’
Em se tratando de colunistas, o processo de ‘domesticação’ é um pouco mais complexo, porém mais eficaz. Prova disso é que são cada vez mais raros, os colunistas/comentaristas que abrem mão da visibilidade e dos bons salários em nome do compromisso com a pluralidade das ideias. Entre colunistas/comentaristas cada vez mais prevalece o coro de uma nota só. Todos dizem o mesmo sobre as mesmas coisas.
Além de jornalista, Maria Rita Kehl é psicanalista e intelectual respeitada, com vários livros publicados. Ao convidá-la para ocupar aquele espaço, o que se pode imaginar é que a direção de O Estado de S. Paulo apostava que ela iria transferir para a publicação parte do prestígio que possui. Conheço várias pessoas que liam o Estadão por causa dela. Da parte de Maria Rita, o que se pode deduzir é que ela buscava uma tribuna a mais para debater ideias. Até aí, tudo bem.
O problema surgiu quando sua visão/análise se chocou com a dos proprietários do jornal. Da mesma forma que a família Mesquita não consultou seus funcionários para anunciar, em editorial o apoio ao candidato à presidência da República, José Serra, é de se esperar que uma colunista decida, por conta própria, o que vai escrever. Não foi por acaso que a própria Maria Rita começou o artigo em questão classificando de ‘digna’ a atitude do Estadão ao assumir publicamente que tem candidato. Certo?
Elitista e excludente
Errado. Ela enganou-se redondamente quanto ao quesito atitude ‘digna’. O Estado de S. Paulo que publica, na primeira página, há meses, que está sob censura (conquistada nos tribunais pela família Sarney) é a mesma publicação que não pensou duas vezes ao demiti-la por ter destoado de sua ‘linha editorial’. Pelo visto, o liberal histórico ‘Estadão’ reza pela cínica cartilha de Assis Chateaubriand que, certa vez, aconselhou um jornalista que dele discordara a comprar um jornal, caso quisesse continuar expressando sua própria opinião.
Claro que a direção do Estado de S. Paulo valeu-se de eufemismos para tentar descaracterizar a demissão, atribuindo-a ao ‘natural’ rodízio de colunistas e coisas no gênero. Como a maioria dos liberais e neoliberais brasileiros, a direção de O Estado de S. Paulo continua não vendo contradição alguma em defender a liberdade, mas dela excluir a maioria da população; em ser contra a censura e, na primeira oportunidade, praticar a censura; em defender a democracia, desde que ela inclua apenas os ‘bem nascidos’ e ricos; em definir como ‘censura’ qualquer tentativa de controle social da mídia.
No passado os liberais brasileiros conseguiam defender a liberdade e, ao mesmo tempo, eram favoráveis à escravidão. Hoje, dizem defender os valores democráticos, mas não querem nem ouvir falar em programas sociais. A ‘democracia’ por eles sonhada é elitista e excludente. Se você quiser irritar um liberal ou neoliberal é só mencionar, por exemplo, que o programa Bolsa Família deu certo e já tirou 29 milhões de pessoas da pobreza, convertendo-as em classe média.
O ‘efeito preguiça’
No artigo ‘Dois pesos’, Maria Rita foi mais longe e daí a irritação que provocou e a demissão de que foi vítima. Não só mencionou o sucesso dos programas sociais – que hoje têm reconhecimento e respeitabilidade no Brasil e no mundo – como deu visibilidade a um assunto que os donos da mídia fazem de tudo para manter trancado a sete chaves: o preconceito da elite dita culta e liberal (ou neoliberal) contra os pobres brasileiros. Preconceitos há muito destilados em e-mails do tipo do que recebeu Maria Rita em sua caixa postal e ousou debatê-lo em sua coluna.
E-mails com teores semelhantes circulam no país há mais de três anos, variando apenas de personagens e de local. Geralmente citam exemplos de beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF) que deixaram de trabalhar ou que passam a recusar trabalho por menos de R$ 200,00, maior valor deste benefício pago pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Por quatro anos e meio, durante a gestão do ministro Patrus Ananias, coordenei a Assessoria de Comunicação Social do MDS e enfrentei de perto este preconceito. Cansei de ligar para repórteres e colunistas da grande mídia, que publicavam matérias denunciando que o PBF produzia ‘efeito preguiça’ nas pessoas, mostrando-lhes com dados e pesquisas que isso não era verdade. Os dados e pesquisas que o MDS disponibilizava para a mídia nunca eram publicados, mas as denúncias e desinformação contra o programa e seus beneficiários jamais deixaram de ser notícia. Muitas e seguidas vezes em forma de manchete, sem direito a resposta. Aqui mesmo, neste Observatório, já publiquei artigos sobre o assunto.
O caso do garçom de Recife
Certa vez, um desses e-mails apresentava como verdade a informação de que 100 mulheres beneficiárias do PBF, depois de terem freqüentado um curso de qualificação profissional oferecido por empresários, preferiam continuar sem trabalhar.
Como jornalista, fiz o que normalmente se deve fazer nesta situação: apurar. Escalei repórter e fotógrafo de nossa equipe para ir a Natal, no Rio Grande do Norte, onde, de acordo com o e-mail, a situação tinha lugar, a fim de verificar o que estava acontecendo. Quatro dias depois, os profissionais retornavam com informações que desmentiam cabalmente tudo o que estava sendo dito: nenhuma instituição em Natal (prefeitura, Associação Comercial, Federação das Indústrias, governo do estado, escolas públicas, igrejas etc.) assumia ter realizado o tal curso de capacitação para mulheres do PBF. Nenhuma entidade tinha conhecimento da denúncia que o e-mail continha. Nenhuma instituição sabia citar um nome, sequer, de beneficiária do PBF que havia recusado emprego.
Repassamos esses dados para a mídia que, como sempre, não publicou uma linha, enquanto os e-mails mentirosos continuavam pipocando. A exceção foi a revista CartaCapital que, tempos depois, na seção ‘Brasiliana’, fez o que o resto da mídia não fez: checar a afirmação de um senador pernambucano, de que um conhecido garçom amigo seu, de um bar de praia em Recife, tinha deixado de trabalhar para viver do dinheiro que a mulher recebia do Bolsa Família.
Os limites da liberdade
O repórter de CartaCapital foi a Recife, esteve na praia e nos bares citados pelo senador e ninguém conhecia o ‘conhecido’ garçom. O repórter constatou, no entanto, que o tal senador não aparecia por lá há muito tempo. Provavelmente desde a eleição passada. Resumo da ópera: o senador havia mentido, confiando que sua palavra seria aceita como expressão da verdade.
O Brasil mudou e mudou para melhor. No lugar do favor e do assistencialismo, temos políticas públicas, onde os cidadãos possuem direitos e não precisam, como ressaltou Maria Rita, baixar a cabeça para quem quer que seja.
Infelizmente, nós, jornalistas ainda estamos longe da liberdade e independência que deveria caracterizar, em uma democracia, o debate das ideias. Ao demitir Maria Rita Kehl, o Estado de S. Paulo acrescentou mais uma triste lição à longa lista de truculências ideológicas protagonizada pelos nossos históricos liberais/neoliberais, deixando nítidos os limites da liberdade sonhada por eles: um coro de uma nota só.
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Jornalista e professora da UFMG, doutoranda em Comunicação pela UnB e ex-coordenadora de Comunicação Social do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome na gestão de Patrus Ananias; ex-presidente da Fundação TV Minas Cultural e Educativa (Rede Minas de Televisão)