No apocalipse semiológico, o texto, na forma como o conhecemos hoje, deixa de existir. Ao contrário do que jamais acontecerá com a ficção de São João, os leitores podem chegar a acordo quanto à data-marco do início do fim do texto: 10/04/2006.
Segundo o paradigma dominante, o texto é tratado como o portentoso prêmio disponível no término da jornada de quem procura o conhecimento. O fluxograma dos serviços de recuperação da informação exemplifica: o sujeito introduz um termo de pesquisa, o sistema devolve uma lista de textos nos quais o termo ocorre. A lista é disposta na ordem decrescente da relevância estatística das ocorrências do termo. Sem se dar conta do dramático movimento, que o faz transitar do ambiente dinâmico para o estático, o sujeito finalmente recebe seu prêmio, após optar cuidadosamente. O paradigma dominante, portanto, vê no texto a melhor fonte com a qual podem contar todos os não-oniscientes, os mesmos que não foram capazes de ler todos os textos.
Conforme os autores da epistemologia progressista (Novallis 1988, Habermas 2004), andorinha só não faz verão. Já os lingüistas (Kock e Travaglia 1989) preferem se referir à intertextualidade. Afirmam progressivamente que os textos somente adquirem sentido ao se relacionarem entre si. Admitir essas idéias faz emergir a diferença entre informação e conhecimento. A informação diz respeito ao texto estático, acabado, fruto de uma produção privada, particular. O conhecimento é o somatório dos particulares, não se encerra definitivamente em nenhum deles e está em constate transformação, por mais que os representantes da epistemologia conservadora (Rush Limbaugh, José Serra, outros) não gostem.
‘Não seria o caso de reavaliar sua vontade?’
O fluxo das operações no Google Trends, cuja recente data da entrada em operação marcou o início deste apocalipse, encerra-se diferente. O texto estático não é o destino final, não vem dali o conhecimento. Dado um termo de pesquisa, o sistema retorna outros termos. Os itens devolvidos tanto representam consultas feitas ao serviço de recuperação da informação, quanto textos indexados pelo serviço, pois os termos ocorreram primeiro nos textos.
No paradigma do texto dinâmico – PTD – não ocorre o movimento dramático. O leitor tem suas necessidades semióticas satisfeitas pela torrencial e dinâmica oferta de símbolos sobre símbolos. Apenas o robô precisa descer aos particulares. O humano é livre para planar sobre as palavras-chave relacionadas, extraídas da totalidade da coleção de textos estáticos disponíveis. A crise causada sobre o mercado editorial e a imprensa escrita, em virtude das mídias digitais é irrisória se comparada à transição do foco de interesse do leitor, desde o diminuto e falível texto estático, para o gigante, personalizado e atemporal texto dinâmico.
No paradigma tradicional, dado um termo candidato a ser palavra-chave, obtemos os textos onde este termo ocorre com relevância estatística. A fórmula mais conhecida para gerar os escores é dividir a freqüência do termo – FT – pela freqüência de documento – FD (SPARK, 1972): para cada texto t da coleção c, onde ocorre a palavra p, divide-se a freqüência de p em t (FT), pela quantidade de ts em c onde p ocorre pelo menos uma vez (FD). Isto permite atribuir, para cada p de t em c, um escore que representa o grau de keyness (chavicidade, segundo Berber-Sardinha 2004) de p em t. Porém, o fluxograma das pesquisas mais comuns só prevê a exibição de uma das faces da moeda. Por outro lado, no PTD, além do caminho desde o termo de pesquisa até o texto, onde o termo ocorre com relevância, também se privilegia o caminho desde o texto até a lista dos seus termos. O texto pode ser a melhor escolha para o termo pesquisado, mas pode haver outros termos que fossem melhores inícios de pesquisa para se chegar ao texto. ‘Não seria o caso de o sujeito reavaliar sua vontade?’ pedagogicamente sugere o sistema.
A voz da máquina
Na prática, a mudança pode ser muito simples. Basta acrescentar à lista dos dez textos mais relevantes para o termo pesquisado, as respectivas listas, independentes da pesquisa, das cinco palavras-chave mais relevantes de cada um dos dez textos. Tanto a primeira palavra-chave do primeiro texto pode não ser aquela da consulta, quanto o primeiro texto retornado pela introdução desta primeira palavra-chave, como nova consulta, pode não ser aquele primeiro texto obtido na consulta anterior.
A adoção desta estratégia, por parte dos mecanismos de recuperação de informação, exige uma drástica adequação comercial. Segundo o modelo bastante difundido dos cliques remunerados, sem o movimento dramático as chances de receita são reduzidas, uma vez que as empresas auferem lucro ao remeter os visitantes para os textos da rede, e o texto dinâmico, ao contrário, tem potencial para manter o visitante indefinidamente entretido com os estímulos simbólicos do índice. O acervo de textos alimenta o robô e o estrato estatístico obtido sobre a totalidade da coleção livra o humano da necessidade de ler, diretamente, o enfadonho texto estático. O passo seguinte para dentro do apocalipse suprime as referências aos textos estáticos e organiza automaticamente as palavras-chave em categorias (ver algoritmo E2CALB, em Fernandes, 2010a). O leitor não encontra, no texto dinâmico, a sentença cantilever é um tipo de asa, mas vê cantilever sob a categoria asa. Para tratar as informações de última hora, objetos preferenciais do texto jornalístico, o leitor é capaz de classificar os nódulos conceituais por relevância e data.
No cenário descrito, o texto dinâmico não existe para refinar a recuperação do estático, sua vocação é substituí-lo no rol das preferências do leitor compulsivo.
Em Fernandes (2010b), a capacidade linguística de que são dotados os beligerantes humanos é consequência da instintiva necessidade de auto-preservação. Quanto menos convincente o símbolo da agressão, maiores as chances dela substituir a performance. A farsa genealógica paralela àquela de Toth também pode explicar a adquição causada pelo estímulo linguístico. Na lógica de Hobbes, ameaçar é fazer-se parecer mais do que se é. O pingue-pongue das palavras induz ao heróico mundo da cavalaria admirado pelo Dom Quixote. Cervantes critica a própria personagem, e o presente texto filosófico posiciona-se taxonomicamente acima do autor espanhol, apenas por mencioná-lo. Os degraus simbólico e meta-simbólicos viciam por fazer o frágil humano sentir-se em um mundo extraordinário, meta-extraordinário.
No fim do texto, quando a máquina pode ouvir todas as vozes, o humano prefere ouvir a voz da máquina.
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Filósofo, linguista, professor de Semântica, Teoria da Enunciação, Redação Empresarial e Acadêmica. Ex-bolsista Grices/Capes. Membro do Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística – NUPILL