Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“Vários leitores fiz­eram reparos a alguns aspec­tos do tra­balho jor­nalís­tico do PÚBLICO nos dias que se seguiram ao aten­tado bombista de Oslo e ao mas­sacre da ilha de Utoya. Nem todos serão razoáveis, mas vale a pena referi-los, pelo que mostram de atenção e exigên­cia face aos padrões de qual­i­dade que os seus autores esperam ver reflec­ti­dos no jor­nal. Sem pre­juízo de afir­mar que, na minha per­spec­tiva, a cober­tura da tragé­dia norueguesa de 22 de Julho e dos seus desen­volvi­men­tos hon­rou em geral esses padrões, com destaque para a importân­cia dada a um olhar jor­nalís­tico próprio no ter­reno, asse­gu­rado ao longo da sem­ana seguinte pelas reporta­gens de Joana Gor­jão Henriques.

Entre as questões que me foram colo­cadas, con­sidero espe­cial­mente rel­e­vante a pre­ocu­pação man­i­fes­tada pelo leitor Eusébio Paulino, que, em men­sagem do pas­sado dia 6, crit­i­cava ‘a forma como o PÚBLICO desde há duas sem­anas pub­lica todos os dias a imagem’ do assas­sino, mas não as ‘das víti­mas de Oslo ou dos seus famil­iares’. E man­i­fes­tava par­tic­u­lar ‘espanto’ por ter visto ‘na primeira página do P2’ de 5 de Agosto o que descreveu como ‘uma ‘mag­ní­fica’ imagem de Anders Behring Breivik [o autor con­fesso dos crimes], desta feita com dire­ito a trata­mento em pho­to­shop’. Para este leitor, ‘o PÚBLICO dá assim o seu sin­gu­lar con­trib­uto para que mentes vul­neráveis (nomeada­mente jovens) passem da pura con­tem­plação do belo para a idol­a­tria do per­son­agem retratado’, e ‘não espan­taria saber que jovens por­tugue­ses ‘pos­ter­i­zam’ as belas ima­gens que o PÚBLICO oferece’.

Há nesta crítica alguns erros de facto e uma ideia que merece reflexão. Não é ver­dade que, no período referido, o jor­nal tenha pub­li­cado ‘todos os dias’ a imagem do assas­sino, longe disso. E só uma vez o fez com forte destaque na capa, na edição de 26.07, com aquela que se tornará provavel­mente uma fotografia emblemática deste caso, mostrando Breivik numa viatura da polí­cia, a cam­inho do tri­bunal. E tam­bém não é ver­dade que tenha igno­rado as ima­gens das víti­mas, bas­tando referir que duas pági­nas da edição de 31.07 lhes são inte­gral­mente ded­i­cadas. Alguma repetição desnecessária do rosto do crim­i­noso poderá ter acon­te­cido no noti­ciário pub­li­cado na Inter­net. Mas tam­bém aí, recorda a respon­sável pela edição on line, Simone Duarte, houve a pre­ocu­pação de ‘hom­e­nagear as víti­mas’, numa peça ilustrada que foi das mais con­sul­tadas ‘durante dias’.

Ape­sar das inex­ac­tidões referi­das, creio que a men­sagem de Eusébio Paulino coloca uma questão impor­tante: a dos lim­ites que a imprensa respon­sável, sem nunca esque­cer a sua mis­são infor­ma­tiva, deve colo­car à vis­i­bil­i­dade (tanto da pes­soa como do seu pen­sa­mento) de alguém que tem no impacto mediático dese­jado uma das moti­vações deter­mi­nantes de um crime abjecto. De alguém que destrói dezenas de vidas como método de pro­pa­ganda de ideias não menos abjec­tas. Parece claro que essa reflexão foi feita na redacção do PÚBLICO, como o ates­tava, logo na edição de 27.07, um artigo de Jorge Almeida Fer­nan­des, inti­t­u­lado ‘O homi­cida à procura de um lugar na História’, que vale a pena reler para enten­der como o propósito mediático e a busca da imi­tação são essen­ci­ais neste tipo de ter­ror­ismo, indi­vid­ual ou orga­ni­zado, e como o seu maior ou menor sucesso ‘depende do trata­mento político e mediático da tragédia’.

Creio que o jor­nal fez, no essen­cial, o que devia. Noti­ciou, procurou enten­der a natureza do crime e do seu con­texto, anal­isou, ouviu per­i­tos, deu espe­cial atenção ao modo como a sociedade norueguesa reagiu ao mas­sacre e às reacções difer­en­ci­adas que este sus­ci­tou nos meios da extrema-direita oci­den­tal. Não serviu de ampli­fi­cador ao man­i­festo ‘ide­ológico’ do assas­sino, limitando-se a referir com sobriedade os ele­men­tos que con­siderou úteis para car­ac­teri­zar o indi­ví­duo, os seus objec­tivos, méto­dos e delírios.

É neste quadro que vale a pena pen­sar se foi uma boa escolha edi­to­r­ial a que indig­nou o leitor, ao deparar com a capa do P2 de 05.08 ocu­pada pela imagem estilizada do rosto de um crim­i­noso moti­vado por ideias nas quais, em maior ou menor grau, se recon­hecerão sec­tores das sociedades con­tem­porâneas influ­en­ci­a­dos pelo pop­ulismo xenó­fobo, con­trário à matriz de val­ores civ­i­liza­cionais que são recon­heci­da­mente os deste jor­nal. Sem pre­ten­sões de afir­mar certezas num tema que dividirá nat­u­ral­mente sen­si­bil­i­dades — a começar pelo modo como se encaram noções sub­jec­ti­vas de beleza, e da estética do mal em par­tic­u­lar —, creio que o efeito de ‘pos­ter­i­za­ção’ temido pelo leitor con­sti­tuiu um risco que pode­ria ter sido evitado.

Um outro leitor escreveu do Algarve para criticar um texto da edição de 24.07, o primeiro em que o PÚBLICO pôde já recon­sti­tuir o que se pas­sara durante as horas de hor­ror vivi­das na pequena ilha de Utoya. Numa peça assi­nada por Joana Amado, relatavam-se os momen­tos ini­ci­ais do pânico provo­cado pelo tiroteio: ‘As pes­soas (…) não sabiam para onde fugir. Umas subi­ram às árvores, out­ras esconderam-se por detrás de peque­nas ele­vações do ter­reno, muitas cor­reram às voltas como se fos­sem baratas ton­tas. E out­ras atiraram-se à água (…)’. A expressão ‘baratas ton­tas’ chocou o leitor, que a con­siderou inapro­pri­ada à nar­ração de ‘ acon­tec­i­men­tos tão trági­cos’, vendo nela uma forma ‘desumana’ de os relatar, que desre­speitaria a dor dos ‘famil­iares e ami­gos das víti­mas’. Pode entender-se a reacção e podem sem­pre esgrimir-se argu­men­tos de gosto, mas con­sidero injusta a crítica, que isola do con­texto do relato uma frase que, na sua ter­rível eficá­cia des­critiva, nos dá a ver com clareza o que se pas­sou. Nada encon­tro nela que possa ser inter­pre­tado como sig­nif­i­cando menor respeito pelas pes­soas envolvi­das ou pelos leitores.

Questão difer­ente levan­tou Miguel Lopes, que con­siderou ‘ten­den­cioso e mal fun­da­men­tado’ o texto inti­t­u­lado ‘Podemos cul­par Sarkozy, Merkel e Cameron pelo clima que provo­cou aten­ta­dos de Oslo?’, assi­nado por Clara Barata na edição de 31.07. Na per­spec­tiva deste leitor, que acusa a jor­nal­ista de ‘[dar] como fac­tos as suas opiniões’, o modo ten­den­cial­mente afir­ma­tivo como a peça responde à per­gunta for­mu­lada no título seria um ‘aproveita­mento político de uma tragé­dia’, e a sua con­clusão uma ‘extrap­o­lação (…) absur­da­mente exagerada’.

Vejamos o que se escreveu. No primeiro pará­grafo, a autora da peça define mel­hor a questão pro­posta no título: a de saber se o mas­sacre na Noruega será ‘uma chamada à respon­s­abil­i­dade dos líderes europeus que (…) se ren­deram à retórica anti-imigração dos par­tidos da nova extrema-direita, em ascen­são por toda a Europa’. E anun­cia logo a con­clusão: ‘A resposta aproxima-se a pas­sos lar­gos do ‘sim’’. O texto recolhe as opiniões de dois espe­cial­is­tas estrangeiros, mas é nas pas­sagens direc­ta­mente atribuíveis à jor­nal­ista que é mais clara­mente sug­erida uma lig­ação entre as declar­ações de vários gov­er­nantes europeus de dire­ita ou centro-direita e as con­vicções do assas­sino de Oslo. Exem­p­los: quando afirma que no ‘man­i­festo’ de Breivik ‘[se] encon­tram ideias que soam a lou­cura, mas tam­bém out­ras que não andam assim tão longe das que temos ouvido na boca dos políti­cos europeus’, ou quando escreve que gov­er­nantes como os cita­dos no título ‘fiz­eram declar­ações que não terão sido mal vis­tas pelo ter­ror­ista norueguês’.

Não dis­cuto a per­t­inên­cia do tema, que é o da avali­ação da existên­cia de áreas de con­tacto entre o dis­curso de cer­tos líderes da dire­ita europeia (e não só da dire­ita) sobre as questões da imi­gração e da inte­gração e a ide­olo­gia xenó­foba e rad­i­cal de forças extrem­is­tas (que por seu lado não dev­erão ser resum­i­das às fobias e à lóg­ica retor­cida de um assas­sino impiedoso). E penso que essa per­t­inên­cia está fun­da­men­tada em exem­p­los da história recente cita­dos pela jor­nal­ista. Mas acom­panho o leitor na ideia de que este não foi um bom exem­plo de tra­balho infor­ma­tivo. As con­clusões que o artigo sug­ere teriam cabi­mento num texto clara­mente assi­nal­ado como de análise — ou de opinião, uma entre out­ras —, não numa peça pag­i­nada como sendo de tipo noti­cioso. Tendo sido essa a opção, impunha-se aliás uma maior abrangên­cia na recolha de opiniões — e não seria cer­ta­mente difí­cil encon­trar espe­cial­is­tas credíveis dis­pos­tos a argu­men­tar que não faz sen­tido ‘cul­par Sarkozy, Merkel e Cameron pelo clima que provo­cou aten­ta­dos de Oslo’. A mel­hor infor­mação é a que dá o máx­imo de ele­men­tos aos leitores para for­marem as suas próprias opiniões.

Reg­isto, a ter­mi­nar, o que a leitora Maria João Pires escreveu a 01.08 acerca de um comen­tário à peça acima referida pub­li­cado na edição on line: ‘Quando o PÚBLICO anun­ciou que ia mod­erar comen­tários aplaudi. Hoje esperei o dia inteiro que este tivesse sido aprovado por lapso, mas as horas pas­sam e nada de desa­pare­cer’. A leitora tem toda a razão em sentir-se defrau­dada face às expec­ta­ti­vas cri­adas pela alter­ação do sis­tema de gestão dos comen­tários. É incom­preen­sível que um texto como o que ref­ere — não o tran­screverei aqui, mas é uma pura man­i­fes­tação de ódio xenó­fobo e um apelo bru­tal à vio­lên­cia — possa ter sido aprovado e ter per­manecido em linha durante mais de uma sem­ana nas pági­nas do PÚBLICO na rede. A respon­sável pela edição on line recon­hece o erro ‘lamen­tável’ (‘a equipa que aprova comen­tários deixou escapar este, que clara­mente viola todos os nos­sos critérios de pub­li­cação’) e anun­cia: ‘Em Setem­bro fare­mos um bal­anço interno destes primeiros meses de mod­er­ação de comen­tários e se for o caso rever­e­mos pro­ced­i­men­tos’. Creio que urge, de facto, fazer esse bal­anço.”