Um aspecto preocupante está marcando a eleição presidencial em curso: o emprego da abordagem religiosa para a definição do voto. Não deve ser admissível que questões religiosas norteiem a escolha de um presidente que vai governar uma população de uma diversidade religiosa enorme; a própria Constituição estabelece que o Brasil é um país laico, que não se posiciona contra ou a favor quaisquer religiões.
Trazer para as eleições considerações de cunho religioso pode, no extremo, incitar um enfrentamento de conseqüências imprevisíveis, onde evangélico só vote em evangélico, católico em católico, judeu em judeu, ateu em ateu. Até a existência de partidos políticos com denominação religiosa deveria ser questionada; ou será que seria aprovado um Partido Muçulmano Democrático ou um Partido Popular da Umbanda?
A orientação religiosa é de foro íntimo, é opção de cada um, não devendo ser associada a decisões do Estado, que afetarão todos os habitantes do país, dos mais diversos credos e seitas. Quando isso acontece, surgem tensões incontroláveis, de características passionais, que podem resultar até em sangrentas guerras civis – como ocorreu, por exemplo, na antiga Iugoslávia –, evidentemente, associadas também a conflitos étnicos.
A questão dos preservativos
Mas, voltando à campanha eleitoral deste ano, o ponto pior é a motivação torpe com que os argumentos religiosos estão sendo introduzidos no debate. Definitivamente não se trata de convicção autêntica, mas de artifício de campanha com o interesse de utilizar como massa de manobra os fiéis de cada credo, ao sabor das candidaturas.
A hipocrisia insuflada por partidários de José Serra joga para a opinião pública que Dilma não merece o voto dos cristãos por defender o aborto; por sua vez, para não perder os preciosos votos, a candidata volta atrás no que disse clara e corretamente: o aborto é uma questão de saúde pública. Em momento algum se defende a institucionalização do aborto como método contraceptivo ou como prática corriqueira. Mas uma vez que não se investiu o suficiente em educação, prevenção ou segurança – estas, sim, capazes de evitar a gravidez indesejada, de extremo risco ou fruto de ação criminosa –, o Estado deve, sim, prover a quem necessitar e desejar, condições dignas e seguras para a realização do procedimento.
A Igreja condena o uso de preservativos sob a alegação de que esta prática favorece a permissividade sexual; não vê a distribuição da popular camisinha nem como prioridade no combate à escalada da Aids. Será que num possível governo Serra, o Ministério da Saúde vai parar de distribuir preservativos nos postos de saúde? Certamente, não. Então, utilizando os mesmos critérios aplicados a Dilma, os cristãos não deveriam também votar no Serra, que estaria se posicionando contra os preceitos defendidos pela Igreja.
Em troca de benefícios espúrios
Eu sou católico, sou contra a prática do aborto, mas tenho que reconhecer o direito de quem pensa diferente de mim. De outra forma, teríamos que aceitar que, se o presidente fosse eleito por uma maioria de Testemunhas de Jeová, seria lícito que ele enviasse ao Congresso uma Medida Provisória proibindo as transfusões de sangue nos hospitais. Se fosse judeu, poderia transformar a circuncisão num procedimento rotineiro do SUS, obrigatório a todos os meninos. Ou se fosse representante da maioria evangélica, proibiria o corte de cabelo para as mulheres. Ou ainda, se fosse presbiteriano, ser-lhe-ia permitido decretar a obrigatoriedade do pagamento do dízimo.
Parece que as pessoas não se dão conta do absurdo cometido ao colocarem o nome de Cristo no jogo sem nenhuma santidade da política, perdido entre Serras, Dilmas, Obamas e Bushs.
Se descesse hoje à Terra, Ele repetiria com certeza a cena narrada pelo Evangelho de São João, fazendo um açoite com cordas e expulsando todos os vendilhões e manipuladores de votos do seu Templo: ‘Tirai isto daqui e não façais da casa do Pai uma casa de negócios’.
Portanto não sejamos vendilhões, negociantes de coisas de ordem moral em troca de benefícios políticos espúrios, infringindo tacitamente o segundo Mandamento da Lei de Deus: não invocar o seu Santo Nome em vão.
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Arquiteto, Passos, MG