Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem é quem

Dois rapazes foram mortos a facadas na rua Oscar Freire, num bairro elegante de São Paulo. Na reportagem de um grande jornal, informa-se que um dos mortos é irmão de um alto funcionário do governo.

O parentesco teve algo a ver com o duplo homicídio? Tanto quanto se saiba, não. O irmão morava junto com o assassinado? Não, não morava. Alguém tentava utilizar o jovem assassinado para fazer pressões sobre o irmão? Não, não há qualquer vestígio desse tipo de coisa. Em resumo, o fato de ser ou não irmão de quem era não tinha a menor importância para a notícia. Mesmo assim, a informação foi enfiada na matéria – “enfiada” é o termo correto, porque se torturou uma frase para que fosse possível incluí-la.

Uma competente jornalista, Sílvia Zaclis, leitora constante desta coluna, lembra seus tempos de faculdade, quando foi aluna de uma das lendas do jornalismo paulista, Emir Nogueira. “Emir dizia o seguinte: o título ‘Japonês matou a mulher’ é válido se o motivo do crime tiver algo a ver com sua etnia. Se não tiver, é preconceito. ‘Aposentada desmaiou na fila’ é um título correto se ela tiver desmaiado na fila para pegar a aposentadoria; ou isso, ou é preconceito.”

A coisa vai mais longe: “Idoso de 83 anos se une com noiva de 69”. Idoso por idoso, por que ele é idoso e ela é noiva? A partir de que idade a pessoa passa a ser idosa? Não seria melhor deixar que o leitor conclua se o homem que aos 83 anos se uniu a uma mulher de 69 é idoso ou não? Se já existe a informação sobre o número de anos, por que tentar explicar melhor ao leitor que na opinião do repórter o noivo tem idade avançada demais para certas iniciativas?

A fúria de incluir informações preconceituosas ou desnecessárias na matéria levou a outra deformação: um dos rapazes assassinados a facadas em São Paulo era modelo e posou com Lea T. E daí? Deve ter posado com dezenas de outros e outras modelos durante sua carreira. Lea T. foi incluída na matéria porque é conhecida; é uma tentativa – aliás, mórbida – de atrair a atenção para o texto.

Um caso que provocou muito debate ocorreu há alguns anos, quando Edinho, filho de Pelé, foi preso. Por que identificá-lo como filho de Pelé? Pelé teve algo a ver com sua prisão, ou com os motivos que levaram a ela? Não, não teve. Mas ali havia pelo menos uma justificativa para a identificação: Edinho, quando foi goleiro titular do Santos, era identificado como filho de Pelé. Não havia, ali, como separar estas duas fases de sua vida. Mas, com um pouco de boa-vontade, e reconhecendo que Pelé nada tinha a ver com os fatos, seria não apenas possível, mas também correto, mantê-lo fora do noticiário.

 

As palavras proferidas

O antigo diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, está livre das acusações que sofreu. Os próprios promotores, inclusive seu chefe, o linha-dura Cyrus Vance, pediram que as acusações fossem arquivadas.

Só que:

1. Strauss-Kahn era candidato à Presidência da França, com boas chances. Hoje está longe da posição que já teve.

2. Foi algemado, fotografado, humilhado. A polícia o retirou do avião em que retornaria à França e o levou para a prisão. Tudo ocorreu em público. Não há reparação possível para isso. Ele pode até conseguir alguns milhões de dólares de indenização, mas e daí? Isso recupera sua imagem pública, isso o recoloca na disputa pela Presidência da França na posição em que estava antes?

3. E ainda há quem queira algemar qualquer pessoa chamada para depor, simplesmente por sadismo, para saborear a humilhação dos outros.

 

Senhor jornalista

Este colunista chegou a conhecê-lo, mas pouco; acompanhou de longe sua brilhante carreira de empresário jornalístico, fundador de um sólido jornal regional, o respeitado Diário do Grande ABC. E, de mais perto, acompanhou sua trajetória como pai de um grande jornalista, Alexandre Polesi, que depois de se destacar na Folha de S.Paulo e dirigir o jornal da família, comanda hoje o Diário de Guarulhos. Pode-se dizer de Fausto Polesi, que morreu na semana passada aos 83 anos, que teve êxito na vida profissional – em que passou de tecelão a repórter, a editorialista, a dono de jornal – e na vida pessoal, em que transferiu sua imensa capacidade ao filho que o sucedeu na profissão.

 

Cadê a reportagem?

Na semana passada, no mesmo dia, dois livros foram lançados: um, de José Nêumanne, com aquilo que sabe do ex-presidente Lula; outro, de Fernando Morais, sobre os espiões cubanos presos nos Estados Unidos.

No lançamento de Nêumanne, estavam Leôncio Martins Rodrigues, José Serra, senhoras que detestam Lula e o PT e procuravam, no livro, mais material para combatê-los. No lançamento de Morais, Almino Affonso, José Dirceu, muitos entusiastas do governo cubano. Nas duas, faltaram repórteres. E ali havia como obter reportagens, notícias de bastidores, fofocas. O jornalista Bernardo Lerer, que foi aos dois lançamentos, estava perplexo: nos meios de comunicação, ninguém está interessado nessas coisas?

Não, Bernardo, não. Mas se você for a um certo bar de sucos da Avenida Angélica, onde promotores entregam matérias prontinhas (com aquele viés de sempre contra os acusados, mas ninguém é perfeito, né?), encontrará repórteres. No restaurante de uma travessa da Avenida Paulista, onde as informações também são entregues a la carte, você sempre encontrará repórteres. Os meios de comunicação querem notícias, desde que não dê trabalho consegui-las.

 

A Apple sem Jobs

A imprensa é muito boazinha: aceita sem questionar as informações da Apple de que tudo vai continuar igualzinho após o afastamento de seu grande cérebro, Steve Jobs. Não vai, não: o problema da Apple não é administração – tanto que John Scully, que antes havia dirigido a Pepsico e geriu com competência a Apple, também não deu certo.

O fato é que, com Jobs, a Apple foi capaz de criar necessidades que ninguém previa e popularizá-las. Saiu de lá o primeiro computador pessoal com monitor, o Apple; de lá saiu o primeiro computador pessoal com som e outros recursos utilíssimos, mas que não eram exatamente computação, o Macintosh. O celular foi totalmente renovado no IPhone; o IPad é inteiramente novo, radicalmente novo. O problema não é comandar distribuição, fabricação, finanças, compras, vendas, marketing: é gerar inovação. E, se fosse possível fazê-lo sem Jobs, isso significaria que existem dois grandes gênios na mesma cidade, na mesma empresa, na mesma especialidade, com a mesma visão de futuro.

 

Um grande texto

Dois livros que não dá para perder:

1. De Ruy Castro, com Heloísa Seixas, sobre a paixão do casal por viagens: Terramarear narra seus passeios pela Europa, com indicações de livros, discos e filmes. A obra já está nas livrarias. Uma garantia: este colunista nunca leu nada do Ruy Castro que não fosse muito bom.

2. Na terça-feira (30/8), na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, o lançamento de outro livro de texto precioso: a segunda coletânea de crônicas de Humberto Werneck, Esse inferno vai acabar. Os temas variam: de Dilma Rousseff, que Werneck imagina que possa ter sido sua companheira de bailinhos de juventude em Belo Horizonte, até os fantásticos salgadinhos mineiros. Como no tópico anterior, este colunista nunca leu nada de Humberto Werneck que não fosse muito bom.

 

Erramos

O bom repórter Giovani Grizotti, elogiado nesta coluna por seu trabalho eficiente, corrige: não está mais na Rádio Gaúcha, e sim na RBSTV. Registrado!

 

Brincando com nomes

Todo nome escrito originalmente em outro alfabeto pode ser transcrito em português de várias maneiras. Mao Tsé-tung, por exemplo, virou Mao Zedong. Chiang Kai-shek, presidente de Formosa, podia ser Chang Cai-chec, Ch’ang Kai-chek, o que se escolher. Moammar Kadafi pode ser Moamar, pode ser Khadafi, Khaddafi, Gadafi, um imenso número de versões, todas elas corretas.

Mas o que se pede dos meios de comunicação é que unifiquem sua maneira de escrever, para não confundir o leitor. Parece que isso dá trabalho: num só portal informativo, este colunista contou quatro maneiras diferentes de escrever Kadafi.

 

Como…

A mesma notícia, no mesmo portal de internet, sobre o mesmo acidente:

** “Acidente ocorreu no túnel Ayrton Senna, que estava interditado”

O túnel Ayrton Senna fica em São Paulo, na região do Parque do Ibirapuera.

** “No Rio – um carro caiu na Rodovia Ayrton Senna, altura do km 22”.

A rodovia Ayrton Senna, antiga Trabalhadores, fica em São Paulo, e não chega ao Rio.

 

…é…

De três portais diferentes da internet, com o mesmo texto, com os mesmos erros. Quem disse que coincidências não acontecem?

** “(…) ambos tiveram pedido de prisão decretado pelo Ministério Público.”

Se foi um pedido, pedido não é decretado. Estão renovando o Direito!

 

…mesmo?

Num grande portal de internet, referindo-se aos problemas que levaram um antigo craque de futebol ao hospital:

** “emorragia de Sócrates controlada”

Erro de digitação? Não: a “emorragia” não estancou antes de repetida três vezes no texto.

 

Mundo, mundo

Notável: segundo vários veículos, impressos e de internet, extremistas assumiram o ataque à ONU em Abuja, capital da Nigéria. Este colunista sempre imaginou que os ataques terroristas, especialmente os suicidas, fossem promovidos pelos setores mais moderados, aqueles comandados por gente sensata, racional e conversável. Vivendo e aprendendo.

 

E eu com isso?

** “Tabloide britânico sugere que jogador Beckham está ficando careca”

** “Mirella vai a show de Bruno & Marrone”

** “Madonna conversa com sua filha mais velha, Lourdes Maria, durante banho de mar na França”

** “Adriane Galisteu beija o marido Alexandre Iódice no aniversário do apresentador Caio Fischer”

** “Lady Gaga pega onda no México”

** “Ricky Martin encontra as apresentadoras Hebe e Xuxa”

** “Rihanna faz show no Reino Unido de shortinho”

** “Charlie Sheen vai ser vizinho de ex-mulher”

** “Filha de famosa mostra língua”

** “Angelina Jolie visita a Croácia”

 

O grande título

A escolha do grande título ficou difícil: é uma grande safra. Por exemplo:

** “Colisão entre carro e vaca fere vereadores”

Ou então, um daqueles títulos que só podem ser entendidos numa determinada região:

** “Homem encontrado em trevo de Piracanjuba (GO) morre no HUGO”

E um clássico:

** “ONU retira parte de membros da Síria”

É difícil chegar tão perto da perfeição.

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[Carlos Brickmann é jornalista e diretor da Brickmann&Associados]