Ganha espaço no Brasil a defesa da chamada ‘neutralidade da rede’, a qual implica proibir os responsáveis pela oferta de conexão à internet e pelo tráfego de dados (essencialmente as empresas que controlam as redes de telecomunicações) de estabelecer qualquer discriminação na forma como gerenciam o fluxo de pacotes de dados. Isso significa impor um tratamento isonômico à informação que circula na rede, independente de sua origem ou conteúdo.
Na minuta de anteprojeto de lei formulada pelo Ministério da Justiça para o que se denominou ‘Marco Civil da Internet’ constou regra com essa finalidade. Sua adoção vedaria a possibilidade de se encaminhar de forma privilegiada e mais rápida pacotes de dados provenientes de determinados sítios ou de se bloquear o acesso dos usuários a certos serviços. Limitaria assim os potenciais conflitos entre provedores de conteúdos e serviços e aqueles que controlam a infraestrutura da rede, os quais tendem a se intensificar à medida que a internet torna-se mais onipresente na mediação das relações econômicas e sociais.
Uma empresa de telecomunicações que oferece conexão em banda larga não poderia, por exemplo, bloquear o acesso de usuários a serviços de voz sobre IP, que tendem a prejudicar as receitas dos serviços tradicionais de telefonia, ou estabelecer acordos de exclusividade com portais de conteúdo para bloquear ou dificultar o acesso de seus clientes a portais concorrentes.
Modelos de negócios
É mais um dilema de políticas públicas resultante das mudanças do setor. O objetivo é impedir que o controle sobre a infraestrutura da rede, ainda concentrado em um número reduzido de empresas, possa interferir com a diversidade que marca a oferta de conteúdos e serviços. Seria preservado, dessa forma, o potencial de inovação e diversidade associado à internet contra práticas discriminatórias e contrárias à concorrência.
Diferentemente do que poderia parecer, no entanto, a questão não é simples. Há aqueles que questionam a oportunidade de se preservar o modelo atual da internet baseado na não discriminação de conteúdos e serviços. O acordo que Google e Verizon anunciaram no mês de agosto deste ano reflete essa percepção. Embora reconheça a importância da neutralidade da rede, o documento elaborado pelas empresas enfatiza que exceções mereceriam ser consideradas em certos contextos.
O que se argumenta é que a internet constitui ambiente tecnológico complexo e muito dinâmico. Constantemente surgem novos serviços e aplicativos que podem não se conformar estritamente aos parâmetros exigidos para garantir a neutralidade. Observa-se, na mesma linha, que o desenvolvimento de alternativas de acesso que prescindam das atuais redes de telefonia e de televisão por assinatura poderia envolver modelos de negócio que também não respeitariam a neutralidade.
Um usuário poderia concordar com uma conexão que lhe restringisse o acesso a certos serviços se isso implicasse redução do valor por ele pago. Pode-se até mesmo imaginar situações onde portais e provedores de conteúdo ‘patrocinariam’ o acesso de usuários, desde que seus serviços tivessem prioridade ou exclusividade. O resultado não seria necessariamente contrário à concorrência e em prejuízo dos provedores de conteúdo quando essas alternativas partissem de empresas sem participação relevante no mercado.
Impor a neutralidade, nesse contexto, poderia inibir novos modelos de oferta de conexão à rede e com isso, paradoxalmente, reforçar o aspecto estrutural que motiva a defesa da neutralidade. Mas, por outro lado, admitir irrestritamente esses modelos de negócio poderia reforçar o incentivo a práticas discriminatórias e contrárias à concorrência em detrimento de certos provedores de conteúdo.
Novas regras
Trata-se de mais um dilema complexo de políticas públicas que resulta das profundas mudanças pelas quais passa o setor de telecomunicações como um todo. Cada vez mais a veiculação e a distribuição de informações e produtos culturais deixam de estar vinculadas aos canais tradicionais de mídia e se deslocam para outras redes.
Disso resulta sobreposição no âmbito de atuação de agentes que antes estavam em segmentos distintos. Uma ‘convergência’ que leva ao surgimento de novos conflitos e embates concorrenciais. São questões que afetam não apenas a temática específica da neutralidade da rede, mas as demais discussões que neste momento ocorrem em torno da revisão do marco regulatório do setor.
Além do PL nº 29, de 2007 (atual PL nº 116, de 2010 no Senado), que trata de forma específica da televisão por assinatura, também está em curso a formulação de proposta por comissão interministerial criada em julho para a revisão das normas voltadas à organização e exploração dos serviços de radiodifusão. Em ambos, assim como na discussão sobre o Marco Civil da Internet, evidencia-se a complexidade que acompanha a definição de novas regras para regular as atuais redes de comunicação.