Estava no carro e ouvia no rádio mais uma das adoráveis crônicas do jornalista Salomão Schwartzman, já premiado pelo prestigioso Esso de Jornalismo. Ele já trabalhou no jornal O Globo e chefiou a sucursal paulista da revista Manchete. Na Rede Manchete de Televisão, ancorava o programa jornalístico Frente a Frente, que durou 11 anos. Naquela mesma emissora, idealizou e produziu Clássicos em Manchete, reunindo as principais orquestras sinfônicas do planeta. Fez para a Rádio Globo, do Rio de Janeiro, a cobertura do julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann. Salomão fez o curso de Ciências Políticas e Sociais, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, experiência que lhe deu um lastro incomparável para o jornalismo.
A crônica que segue, de minha autoria, é baseada na deliciosa crônica de Salomão Schwartzman sobre Cristóvão Colombo.
A mulher de Pedro Álvares Cabral
Pedro Álvares Cabral acabou de descobrir o Brasil. Voltou com apenas seis das treze naus com que partiu. Naufrágios, mortes, fome, sede, motins a bordo, pestes, escorbuto, vômitos, diarreias de marinheiros, mas ele ainda não viu nada. A mulher, Isabel, uma das mãos na cintura, outra num cabo de vassoura, espera o marido à porta da casa, em Belmonte.
‘Que cara é essa? Não venha fingindo tristeza, cansaço, doença etc., que eu posso muito bem imaginar o que tu fizeste nessa longa viagem para descobrir uma ilha! Tanto tempo e descobres uma ilha apenas! Aquele genovês vagabundo, bêbado e doido, ficou menos tempo fora de casa e descobriu a América! A América!’
‘Colombo era solteiro. Não teve mulher nenhuma para aporrinhar a vida dele! Eu sabia que por mais novas terras que descobrisse, ia ter que te dar explicações ao voltar. Só se eu não voltasse…’
‘O quê?’
‘Nada, não, é esta tosse danada. Eu mesmo passei vários dias na casa do caralho!’
‘Deste para dizer palavrões, agora?’
‘Mulher! O caralho é o mastro. A casa fica lá na ponta dele!’
‘Hum! Quantas naus tinha a esquadra?’
‘Treze.’
‘Mas por que foste escolher logo um número de azar?’
‘Não escolhi. Foi o rei Dom Manuel quem formou a frota.’
‘A vizinha tem uma cunhada que mora em Lisboa, bem perto do cais, e disse que a partida, no dia 9 de março do ano passado, ele não viu, mas a volta, este ano, ela viu. Então, não me mintas sobre o número dos navios, hein!’
‘Foram treze, sim, Belinha, foram treze!’
‘Ela disse que contou sete na volta, à entrada do porto.’
‘É que seis afundaram!’
‘Credo, homem! Perdeste a metade da frota. Sim, porque uma hora é frota, outra hora é esquadra, eu acho que um bobo que nem tu nem sabes exatamente o que comandaste.’
‘Quase a metade, faltou pouco. Para ser a metade, a perda teria que ser de seis e meia, a metade de treze.’
‘Tu e teu costume de me humilhar! Pensas que não sei fazer contas? Quem cuida da casa? Aliás, na tua ausência, dias houve em que eu não tinha nada para pôr na mesa. Nem pão brega, pão dormido ou pão do dia anterior eu tinha! E mais: a conta do padeiro, depois que atrasou dois meses, ele cortou. Não sem antes olhar bem para meu decote e perguntar: são gêmeos?’
‘Gêmeos? Não entendi!’
‘Tu não entendes, então, homem? O padeiro queria o meu par de seios!’
‘Mas para quê?’
‘Homessa, para quê? Para bulir com eles, então tu não sabes, desaprendeste?’
‘Mas é perigoso!’
‘Perigoso por quê?’
‘Porque ele come muita melancia. E melancia com leite faz muito mal!’
‘E quem disse que ele queria leite, estás tolo? Todo homem quer seio sem leite, ora bolas!’
‘Não tinha pensado nisso! Muito profundo o que tu me dizes, mulher, e muito safado esse padeiro.’
‘E o rei, aquele pão-duro, já te pagou a viagem?’
‘Mandou que eu cobrasse em especiarias. Felizmente eu trouxe muitas. Cravo, pimenta, noz, canela. Enchi cinco navios.’
‘Tu trouxeste tudo isso do Brasil?’
‘Claro que não!’
‘Mas tu não foste descobrir o Brasil?’
‘É que lá eu não encontrei nada!’
‘Não encontraste nada, é? Pensa que eu sou boba? A Carta de Pero Vaz de Caminha caiu na boca do povo! E o escrivão só fala em sexo e em se plantando tudo dá. Que pouca vergonha!’
‘Os temperos, eu não os trouxe do Brasil, eu os trouxe das Índias! Lá morreu assassinado Pero Vaz de Caminha. E Frei Henrique de Coimbra voltou ferido!’
‘Eu sabia que tu tinhas ido a outro lugar porque no paço só se fala em índias, índias, índias! E índias peladas!’
E Isabel começa a bater com o cabo da vassoura na cabeça de Pedro Álvares Cabral, o descobridor do Brasil. Mas, para ela, ele é apenas e tão somente o seu marido!
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Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa); seus livros já foram premiados pelo MEC, Biblioteca Nacional e Casa de las Américas