Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A mão indizível

De uns dias para cá, o horário nobre da televisão brasileira passou a veicular uma campanha publicitária para idolatrar o governo federal. Mais uma. Desta vez o mote é a mão: ela mesma, a mão, esse prodígio de articulações múltiplas com metacarpo, dedos, unhas e incontáveis habilidades, inclusive as políticas. A mão é a mais nova garota-propaganda dos atos do Executivo.

Não, não é de todo absurdo. Além de ferramenta, a mão pode ser discurso, e não apenas na linguagem de sinais. Existe a mão de esquerda: dos punhos cerrados, que denota combatividade. Há o dedo de direita: o dedo em riste, representante da razão que assevera. A mão espalmada, rija, voltada para a frente, no alto do braço erguido, é saudação nazista. Muda-se o contexto e essa mesma mão ganha outro significado: dentro da igreja ela abençoa os noivos, sorridentes, no altar. Existe a cura espiritual pela imposição de mãos, assim como existem a mão na cara, a mão de súplica, a mão que insulta. Há mãos à mancheia, mãos que não acabam mais. Agora os publicitários do Planalto, para darem uma mãozinha à imagem da Presidência da República, inventaram a mão eleitoreira. É a mão do PAC.

Nos anúncios de TV, a mão do PAC é uma mãozona que desce do céu e põe estradas no alto de colinas verdes e planta escolas como árvores no descampado. Depois a mãozona volta para o céu, contente. É uma mãozona que parece mão boba, mas é apenas uma mão leve, no bom sentido: leve e bojuda como um balão de ar quente. Que mãozona é aquela? A voz em off diz que aquela é a mão do povo. “O Brasil está em boas mãos. Nas mãos do povo brasileiro”. No arremate do filmete promocional, duas mãos abertas, em concha, aparecem em close. Elas estão maquiadas, pintadas com as cores da bandeira nacional. São mãos humildes, populares, patrióticas – e sacralizadas. Misticamente sacralizadas.

Comunicando o oposto do que pretende?

A intencionalidade explícita, escancarada, quase obscena da inteligência publicitária reside aí. Ela pretende aproximar a expressão “nas mãos do povo” a uma outra, bastante conhecida, de uso corrente: “nas mãos de Deus”. É o que dizemos de um doente desenganado: ele está nas mãos de Deus. Mesmo quando não há esperanças, as mãos de Deus conduzem ao melhor pouso. “Segura na mão de Deus, e não olhe para trás”, entoavam os coroinhas há mais de 30 anos. Nesse ponto é que tirocínio publicitário enxergou a oportunidade de uma ressignificação que seria uma mão na roda: se, desde Roma, o latim ensina que “a voz do povo é a voz de Deus”, nada mais natural que insinuar que “as mãos do povo” são a materialização das mãos de Deus.

Isso feito, o resto é simples, supõe a vã publicidade. Manuseando seus significantes vistosos, ela se imagina capaz de instilar na massa de mãos postas a certeza de que, no fundo, as mãos do governo federal é que são de fato as boas mãos, pois elas nada mais são do que as mãos do povo e, por decorrência semântica, as mãos de Deus. Eis então que, num milagre da propaganda, o Poder Executivo é a materialização do Espírito na superfície do Planalto Central. O governo é igual a Deus. Vamos dar as mãos, vamos dar as mãos. A partir de agora, enlevados por tão inspiradora evangelização cívica, todos nós, todos juntos, vamos empunhar o ufanismo bíblico e erguer as nossas mãos para o céu em agradecimento.

Ou será que não?

Ou será que, uma vez mais, a publicidade governamental, do alto de seu olimpo eletrônico, de onde vende essa mercadoria impalpável, intangível, chamada popularidade, estaria apenas comunicando o exato oposto do que pretende? A pergunta tem lá seus fundamentos.

Uma propaganda inacreditável

O repertório dessas campanhas oficiais é meio de segunda mão. Ele se mantém praticamente inalterado desde a ditadura militar. Se o leitor examinar, verá que não há grande diferença entre “Pra frente Brasil” e “O Brasil está em boas mãos”. É um repertório gasto, esvaziado de credibilidade. No fundo, não é levado a sério por ninguém. As centenas de milhões de reais que os governos estaduais, municipais e, principalmente, federal desperdiçam na propaganda de si mesmos não servem exatamente para convencer o telespectador disso ou daquilo, mas para manter ativa a indústria da campanha eleitoral fora do período eleitoral e para manter acesa a memória do eleitor sobre quais os ícones que identificarão os candidatos governistas da próxima eleição. Propaganda governamental serve apenas para isso, não para ser levada a sério. Vistas isoladamente, cada uma das campanhas de governo é apenas ridícula. É verdade que essa das mãos, que coisa, essa extrapolou. Em matéria de comunicar exatamente o oposto do que pretende, bateu todos os recordes. Poderia aparecer, quase sem retoques, num Casseta & Planeta da vida, no qual significaria o seu contrário. Em vez de mensagem edificante, seria escracho puro.

A mão leve que desce para incrustar uma rodovia no chão poderia bem ser a que, suspeita-se, andou surrupiando uns milhõezinhos da infraestrutura. Ela poderia voltar para o céu com uns trocados entre seus dedos. Outra mão poderia levar um helicóptero da polícia para o quintal de uma certa autoridade, que diria que um helicóptero não faz mal a ninguém, não vai deixar ninguém na mão. De piada em piada, tudo vai ficando bastante constrangedor, é claro, mas é o que é. Alguém deveria avisar aos publicitários chapa-branca que esse negócio de brincadeira de mão não dá certo.

Talvez o leitor se lembre de um cantor das antigas que trinava em barítono: “Maria, o teu nome principia na palma da minha mão”. Ficam os acordes. Maracutaia também começa com m. Malversação de fundos, igualmente. Do povo, do povo mesmo, a única mãozinha que existe nessa história é aquela mão que trabalha, gera riqueza e impostos. Nisso aí, o povo entra com o suor e sai de mãos abanando. É com o dinheiro do povo que o governo paga a conta milionária da sua propaganda inacreditável.

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[Eugênio Bucci é jornalista, é professor da ECA-USP e da ESPM]