Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imprensa educa?

Na sexta-feira (26/08), a imprensa saiu atrás de um filão jornalístico: pesquisa mostra que alunos da última etapa do ciclo fundamental “não sabem ler” nem “fazer contas”. A pesquisa foi feita por um grupo de entidades – Ibope, Cesgranrio e Inep – e teria sido aplicada em 250 escolas de todo Brasil. Os jornalistas não questionaram, não apuraram, não verificaram. Tudo bem, ao que parece a pesquisa confirma uma verdade: as escolas particulares são ruins nesse quesito e as públicas são muito ruins.

Como sempre acontece nesses casos, a imprensa trata do assunto – educação – como se não tivesse nada a ver com a história. E tem a ver. Ou ela escreve para seres na Lua? Para marcianos? Se a imprensa acha que educação não tem nada a ver com jornalismo, que mudemos os conceitos de jornalismo. Porque, até prova em contrário, o público do jornalismo é a sociedade e o papel do jornalismo, mais do que vender livros de culinária, é educar. Um dos motivos para esse desprezo com a educação está no fato de a imprensa não gostar de falar para as pessoas. Como alertam estudiosos da matéria (Wolton, Traquina, entre outros), o jornalista escreve para os coleguinhas, e não para os leitores. Narcisismo? Claro.

Os jornalistas – usando do senso comum – costumam repetir bordões como “educação é importante”, “educação é fundamental”, “é preciso investir na educação”. A bem da verdade, são frases Bombril – qualquer um pode falar, em qualquer ocasião, seja um tirano ou psicopata. Talvez se a imprensa cuidasse mais da educação, em vez de apenas e somente repetir os bordões antigos, tivéssemos melhores resultados nas escolas. Se a imprensa e os demais setores da sociedade olhassem mais as escolas perceberiam que elas sofrem de problemas agudos, crônicos. Então, ao invés de repetir bordões, diriam: precisamos de escolas e não de fábricas pasteurizadoras de gente. E concluiriam: mais importante que saber ler e fazer conta é fazer a criança gostar de ler e fazer contas.

Escolas que fazem as crianças pensar

Há algo de comum – e trágico – entre escola e imprensa: as duas instituições, por natureza, são conservadoras, as duas reproduzem a sociedade nos seus valores e, muitas vezes, nas suas patologias. Se o jornal faz um jornalismo que agrada ao seu leitor/cliente, sem novidades, a escola oferece um ensino que agrada à família, à sociedade, à igreja. A imprensa conservadora alimenta a escola conservadora. Ocorre que no meio tem uma criança e se tem algo na vida que não é conservador é criança. Os pais, leitores dessa imprensa conservadora, e seguidores de uma religião quadrada (como quase todas), quer que a escola seja quadrada e conservadora. É comum os pais determinarem à escola: “Faça com que essa criança me obedeça”. E a escola investe nisso porque os pais querem.

É normal que as crianças logo odeiem a escola, odeiem a matemática e odeiem os livros. Um dia desses, Ricardo Semler, em artigo publicado na Folha de S.Paulo (“Aulas de Amy”, 15/8/2011), mostrou como é possível ensinar sobre bactérias, matemática e plantas a partir da música, tomando como base algo que as crianças têm de sobra: a busca pelo saber. Ocorre que a maioria das escolas e dos pais e das igrejas prefere que as escolas empurrem goela abaixo a tabuada e a crença em Deus e o vovô viu a uva. Claro, tudo isso é medieval, atrasado, mas, com pequenas mudanças, é o método ensinado nas escolas particulares e públicas.

A proposta de Semler tem a ver com a proposta da Escola da Ponte, de Portugal, com a Vivendo e Aprendendo, em Brasília, com algumas escolas públicas de Belo Horizonte criadas por orientação de Miguel Arroyo e com outras espalhadas pelo país. Mas boa parte dos pais e igrejas odeiam essas escolas porque elas fazem as crianças pensarem, criarem, questionarem, buscarem o mundo, refazerem o mundo, ao invés de aceitarem este que os antigos criaram – onde a competição é lei e a crueldade é prática comum.

Escola esquizofrênica

Conversando com o professor Cristiano Muniz, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, fico sabendo que sua tese de doutorado começou com uma pergunta: por que as crianças chegam na escola amando matemática e logo ficam odiando a matéria? É culpa do aluno? Não, é que a escola é burra, ela quer empurrar a matemática em quem chegou ali para aprender; e aprender significa questionar, pesquisar, e não engolir.

Finalmente, qual o papel do Estado? Oferecer educação ou procurar novos modos de educar? As duas. Uma só não basta. E a pesquisa mostrou isso. Estou com a segunda opção. O governo já deveria estar conscientizado de que a educação que ele oferece – salvo exceções – está furada, não funciona, está atrasada. O mundo não vai mudar, não vai melhorar se a educação insiste em práticas que não levam em consideração a criança como o ente principal.

A educação pública ainda não notou que as crianças chegam à escola dispostas a aprender. Ainda não viu o óbvio. Elas querem aprender. Mas logo depois – graças a escola! – odeiam o ensino, a escola. Esse é um crime que um dia, espero, seja motivo de punição dos seus responsáveis. Portanto, mais importante do que transferir conhecimento, o grande desafio do professor é fazer com que a criança continue gostando de aprender. Sob este aspecto, a escola é esquizofrênica: o aluno chega para aprender, querendo aprender, e a escola faz com que odeie a escola e o aprender.

Moral e bons costumes

Mas é preciso registrar que o trabalho da escola e do professor não é nada fácil. O trabalho de professor não é para qualquer um. A educação não se resume à sala de aula, como dão a entender os jornalistas, e muito menos ao seu conteúdo e práticas. E à escola muito menos. A instituição escola é a soma das idiossincrasias da sociedade. Sob ela pesa a força das igrejas, que querem impor seus dogmas e seus valores arcaicos, o conservadorismo da família que frequenta essa igreja e a cultura da sociedade, que, pelo bem ou pelo mal, também quer se sobrepor à escola. Em algumas comunidades, a homofobia pode ser consenso e o professor que questionar essa verdade pode ser apedrejado por esse povo cretáceo.

Quanto à imprensa, pela sua natureza, conforme alguns autores, ela assume o papel de guardiã da moral e dos bons costumes. Os jornais lidos pelos seguidores de determinada divindade acham certo apedrejar a mulher que comete adultério; isso também é ensinado nas escolas frequentadas pelos filhos dessas pessoas. Ao reproduzir esses costumes, a imprensa educa a comunidade e sustenta a escola.

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[Dioclécio Luz é jornalista, mestre em Comunicação pela UnB, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias]