O publicitário Dulcidio Caldeira poderá ser chamado de “visionário” no seu meio se a lei que regulamenta o setor de produção audiovisual no Brasil – e cria a cotas para veiculação de programação nacional – for sancionada em duas semanas pela presidente Dilma Rousseff. Com ela, a produção independente de conteúdo no País deve crescer significativamente nos próximo anos. Há projeções de que venha a dobrar de tamanho.
Depois de 22 anos trabalhando em agências de propaganda, Caldeira empreendeu uma mudança substancial em seu currículo ao trocar a direção de criação da AlmapBBDO por cargo semelhante na produtora Paranoid BR há cerca de um ano. Uma atitude impensável, já que as melhores remunerações e oportunidades de negócios ainda estão nas agências.
“Fiz esse movimento pensando exatamente na abertura desse mercado. A implantação da obrigatoriedade de cotas vai fortalecer o mercado de produção de conteúdo”, explica Caldeira. “Será um grande estímulo para que apareçam os nossos Dr. House e Friends. Fora que o papel da mensagem publicitária está cada vez mais se misturando à programação na sociedade digital. Com isso, os anunciantes esperam formatos diferentes para investir as suas verbas de marketing. Criar conteúdos integrados é o futuro.”
A referência às famosas séries americanas se justifica porque lá houve, desde 1970 até 1995, leis de proteção às produtoras de conteúdo independentes para as emissoras. Essa política garantiu a profissionais como roteiristas, diretores de cinema e artistas um mercado cativo, além de fazer dos Estados Unidos um dos maiores exportadores de enlatados televisivos. A reserva só deixou de existir quando o segmento se consolidou. Hoje a grande maioria dos programas de televisão do país é realizada por produtoras independentes.
Exclusividade
A força da televisão aberta no Brasil, somada aos interesses dos canais estrangeiros em veicular seus pacotes de programação vindos prontos de fora, além da acirrada disputa entre operadoras de telecomunicações e emissoras de televisão pelo direito à exclusividade na transmissão de conteúdo, arrastou por anos a discussão em torno da implantação do marco regulatório no País.
Há dez dias, o Congresso finalmente aprovou o Projeto de Lei 116, que separa claramente as atividades de produção, programação e empacotamento dos conteúdos das atividades de transporte e distribuição.
Os principais aspectos da nova lei são a criação de cotas para produção de conteúdo nacional nos canais de televisão estrangeiros e a abertura do mercado de TV por assinatura para as operadoras de telefonia e para as empresas de capital estrangeiro.
Roberto Moreira, presidente do Sindicato da Industria do Audiovisual do Estado de São Paulo, acredita que o risco de não aprovação da Lei é remoto, porque o projeto é resultado de um acordo negociado ao longo de quatro anos e que envolveu toda a cadeia produtiva do setor.
“Pode haver veto a algum artigo, mas não há razão para retrocesso”, diz ele. “A Lei desencadeia um processo econômico virtuoso para o País e não contempla interesses particulares”, reforça Moreira.
Não é o que pensam empresas como Sky, do magnata da mídia Rupert Murdoch. Aliás, executivos de canais estrangeiros têm sugerido que a lei seria um atraso.
“Estão esbravejando por conta das cotas para produção de conteúdo, que é uma parte menor dessa mudança que vai movimentar a economia com impacto positivo na criação de empregos e na oportunidade de novos negócios na cadeia de produção audiovisual”, diz Luiz Noronha, sócio do Grupo Conspiração, uma das maiores produtoras do Brasil.
A cota semanal de três horas e meia de programação no horário nobre da TV paga vem sendo criticada com insinuação de que não há produção de qualidade para atender à demanda obrigatória. Diante disso, os canais teriam de pôr no ar programação sem qualidade ou reprises, o que geraria insatisfação dos assinantes. Noronha rebate o argumento lembrando que “ninguém é maluco de colocar porcaria no ar só para cobrir cota e prejudicar audiência no horário nobre”.
Experiência
Embora incipiente, já existe produção independente no País sendo transmitida. Ainda é um mercado pequeno, mas que, mesmo sem amparo da lei, encontrou brechas para se estabelecer. É encabeçado por produtoras como a própria Conspiração e a O2 Filmes, que tem entre os sócios o cineasta Fernando Meirelles.
As duas produtoras, por exemplo, são autoras de séries brasileiras de sucesso, como Mandrake, da Conspiração, veiculada na HBO, ou então as minisséries Som e Fúria e Cidade dos Homens, produzidas pela O2 para a Rede Globo.
À espera da sanção
Há mais de quatro anos no Congresso, o Projeto de Lei 116 é resultado de muita discussão envolvendo toda a cadeia da produção audiovisual no País. Aprovado no Senado, o próximo passo é a sanção presidencial. Nesse estágio, o risco é de veto a algum artigo.
A nova lei pretende regulamentar o campo da produção e distribuição de conteúdos. Inspirada no modelo europeu, separa as atividade de produção, programação, empacotamento e distribuição.
Atribui à Agência Nacional de Cinema (Ancine) a tarefa de verificar a veiculação da produção nacional em canais estrangeiros. Haverá obrigatoriedade de cotas para a exibição de 3h30 semanais de produção nacional em horário nobre. Já a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) segue responsável pela fiscalização das operadoras de serviços no setor.
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[Marili Ribeiro é repórter do Estado de S.Paulo]