Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paulo Machado

“‘O Sr. Getúlio Vargas, assinando o decreto antipedagógico e anti-social que institui o ensino religioso nas escolas, acaba de cometer um grave erro. É preciso que se diga isso com sinceridade. Este decreto vai ser a porta aberta para uma série de tristes ocorrências. Por ele poderemos chegar até às guerras religiosas. É justamente em atenção aos sentimentos de fraternidade universal que a escola moderna deve ser laica. Laica não quer dizer contrária a nenhuma religião, somente: neutra, isenta de preocupações dessa natureza.’

Cecília Meireles, professora, jornalista e escritora. Crônica publicada no Diário de Notícias (Rio de Janeiro), em 2/5/1931.

Perdoem os leitores, mas a contradição no título de nossa coluna de hoje não foi por nós forjada. Ela está presente em nossa Carta Magna:

… promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (Preâmbulo da Constituição de 1988)

A discussão entre religiosidade e Estado não se encerra com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Um resquício dessa dicotomia se encontra tanto no preâmbulo, o qual revela uma possível falha legislativa, como no art. 19, § 1º, consideram especialistas.

O exercício dos direitos sociais e individuais, o direito à liberdade, à segurança, ao bem-estar, ao desenvolvimento, à igualdade e à justiça são todos retomados nos primeiros artigos de forma explícita e se encontram por toda a Constituição. Os artigos 3º e 4º da atual CF apontam novamente para a harmonia social, para uma sociedade fraterna e sem preconceitos e à solução pacífica das controvérsias.

No entanto, apesar daquele artigo (19) vedar à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público, o artigo 210, § 1º – estabelece que o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Essa mesma contradição determinou, no artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, que: ‘o ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.’

Como vemos, aquilo que há 80 anos Cecília Meireles chamou de o ‘grave erro’ cometido por Getúlio Vargas em 1931, ao instituir o ensino religioso nas escolas públicas, foi reeditado na Constituição Federal de 1988.

Esta contradição de um Estado laico prover ensino religioso nas escolas públicas custa hoje ao brasileiro a manutenção de uma folha de pagamento de 425 mil professores lecionando o quê e para quem?

Nesse mês de agosto de 2011 a Agência Brasil produziu uma reportagem especial sobre o tema: ‘Escolas de fé: a religião na sala de aula’.

Na falta ainda de um espaço para comentarem as notícias, esta Ouvidoria recebeu diversas manifestações dos leitores sobre o especial, a maioria protestando pela ausência de abordagens que tratassem da posição dos ateus em relação ao tema.

Daniela Barros escreveu: ‘Com relação à reportagem sobre o ensino religioso de acordo com a LDB gostaria de apontar a falta de informação sobre os ateus nesse assunto, já que será a classe mais afetada com essa implantação.’

Caio Sergio Damasceno da Silva sugeriu: ‘Sobre a reportagem falando sobre o ensino religioso, bem que vocês poderiam fazer uma reportagem sobre o ateísmo… Já que também tem essa opção. Fica a sugestão: Fazer uma reportagem sobre o ateísmo.’

Carlos B.E. ponderou: ‘Ao mesmo tempo em que achei a matéria boa, também achei ruim. E isso aconteceu pelo fato interessante de não existir ateus ou qualquer ideia de ‘não religião’, pela falta de citação dos mesmos, na história do mundo segundo o texto dessa matéria. De fato fala-se de religião, e ateísmo não é religião. Mas, ateus e pessoas sem religião existem, e não são poucos, vide suas proporções em relação às diversas religiões nos países europeus. E quando se fala em religião há de se tratar, obrigatoriamente, da ausência dela. Historicamente, os religiosos sempre esbarraram com não-religiosos e ateus, e sempre se esbarrarão. A minha posição em relação ao ensino religioso nas escolas é de negação a tal disciplina, especialmente porque acho que não estamos preparados para exercê-la. Para qualquer disciplina exige-se formação e às vezes até pós-graduação, mas não há corpo docente com tal preparação, assim como também não há uma regra clara sobre tal ensino; como disse bem o texto deveria ser de ‘história das religiões’. Finalmente, considerando a posição da Agência Brasil no sistema de comunicação brasileiro, em divulgação aberta e irrestrita da informação, eu gostaria que essa condição de não tratamento e talvez de desrespeito aos ateus e aos que não possuem religião seja sanada nas próximas reportagens sobre o assunto ensino religioso em escolas públicas.’

Rafael Vila Nova protestou: ‘tenho acompanhado com interesse as matérias relacionadas ao ensino religioso nas escolas, principalmente devido ao preconceito e intolerância religiosa. No entanto, me senti completamente excluído pois não foi incluído nenhum caso de preconceito contra ateus, que existe de forma abundante.’

Aos leitores a Diretoria de Jornalismo da EBC respondeu: ‘Como o tema é complexo e envolve setores diferentes da sociedade, o formato escolhido pela Agência Brasil para tratar do ensino religioso, assunto que é pouco discutido pelos veículos de comunicação, foi o do especial. Dessa forma, os vários aspectos são abordados em diferentes matérias e sugerimos ao leitor que acesse o conteúdo completo para ter uma visão mais ampla do que foi publicado.

A questão dos ateus e de como esse público é afetado pela oferta de ensino religioso aparece em mais de uma matéria. Na entrevista com a vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat ela chama bastante atenção para a situação desse público que independente do modelo de ensino religioso que o país adote será sempre o mais prejudicado. O leitor pode conferir a entrevista no link:

Vice-procuradora diz que ensino plural é impossível e defende estudo da história das religiões.

Na matéria que fizemos contando o caso de uma escola de Brasília conversamos com pais que, apesar de não se declararem ateus, defendem a exclusão da temática religiosa do ambiente escolar, já que como espaço de representação do Estado ela deveria seguir o princípio da laicidade: Orações antes das aulas levam pais a travar ‘guerra santa’ em escola de Brasília

Parte importante do nosso especial é uma enquete que foi feita com representantes de diversas religiões em que fizemos a pergunta ‘Você acha que as escolas devem oferecer aulas de ensino religioso?’. Neste caso, fizemos questão de incluir nesse espaço também a opinião de um ateu, o funcionário público Wákilla Mesquita. Esse material pode ser acessado pelo linkclicando no menu abaixo na opção ‘Você acha que as escolas devem oferecer aulas de ensino religioso?’.

Como o objetivo do especial era discutir o ensino religioso em si optamos por focar nessa discussão sobre a previsão legal da obrigatoriedade da oferta e se é papel da escola ou não abordar a temática. Mas estamos atentos à questão dos ateus e no futuro esse público pode ser tema de outras matérias a serem publicadas pela Agência Brasil.’

Pelo que se pode observar nas matérias do especial, parece que as ‘tristes ocorrências’ a que se referia Cecília Meireles, em 1931, estão acontecendo.

O debate que volta a tona neste momento, em que 6,7% da população, quase 13 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE apresentados pelo economista Marcelo Negri em recente estudo (*), declararam-se irreligiosos, é se deve ser função de um Estado laico prover o ensino religioso nas escolas públicas, antes mesmo de se discutir que ensino poderá ser ou não ministrado.

Sobre essa polêmica acerca da laicidade do Estado e o provimento de ensino religioso, o leitor poderá encontrar farto e rico material reunido pelo Observatório da Laicidade do Estado – OLÉ (**), que integra o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos-NEPP-DH, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas-CFCH, da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ.

Ali, o assunto é tratado como um processo em construção e, portanto, em permanente debate: ‘…vale não esquecer que a laicidade do Estado é um processo. Não existe no mundo um Estado totalmente laico, como não existe um Estado totalmente democrático. Como a democracia, a laicidade é um processo, uma construção social e política.’

Nesse sentido o especial da Agência Brasil deu sua contribuição, mas suscitou novas abordagens do tema reivindicadas por seus leitores. Há muitas questões que precisam ser aprofundadas ou respondidas. O formato de reportagem especial permite que isso seja feito na medida em que novas matérias sejam agregadas àquelas inicialmente publicadas.

Faltou a ABr ouvir, por exemplo, os principais interessados: os alunos das escolas públicas que assistem aulas de educação religiosa e os que não assistem e saber como são tratados em função da sua escolha.

Sobre ser facultativo o ensino religioso, conforme manda a lei hoje, Jorge Amado assim se pronunciou por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte de 1946: ‘Se ele [o ensino religioso] é facultativo aos alunos, por que então constar como matéria nos horários escolares? Compete ao aluno religioso conseguir horas fora das normais de seu curso para tal matéria. Imaginemos, ao demais, uma escola onde nenhum dos seus alunos deseje aulas de religião. Se o ensino é matéria de horário escolar, há de possuir e pagar um professor. Quer dizer: pagar alguém para não ensinar coisa alguma naquelas escolas onde nenhum aluno deseje estudar religião.’

Sobre o preconceito contra os alunos não religiosos citado pelo leitor Rafael Vila Nova, o deputado-constituinte eleito por São Paulo, na legenda do Partido Socialista Brasileiro, Guaraci Silveira, na constituinte em 1933/34 argumentou: ‘Podereis vós compreender, Sr. Presidente, Srs. Constituintes, a humilhação de um aluno, de um pequenino brasileiro que merece toda a atenção de seus maiores, ao ter que se retirar da sala de aula onde a professora dele irá ensinar religião, afrontando a cólera da mesma professora e adversidade dos alunos do credo da maioria.’

Outra fonte importante nessa discussão, que eventualmente poderá ser ouvida pela ABr, é a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) que ajuizou ação contra a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro questionando a Lei Estadual nº 3.459/2000, que instituiu as aulas na forma confessional — ministrada de acordo com o credo professado pelo aluno por professores que, além de concurso público, passarem pela chancela de autoridades religiosas.

Entre outros pontos, a CNTE argumenta, na ação, que a lei fluminense fere o parágrafo 1º do artigo 19 da Constituição Federal. Tal dispositivo proíbe que o governo federal e os estaduais mantenham relações de dependência ou aliança com cultos religiosos. O processo menciona, ainda, um eventual desrespeito ao artigo 5º, no que se refere à privação de direitos por motivos de crença religiosa.

Até a próxima semana.

(*) – disponível aqui

(**) – O Observatório focaliza o processo de construção da laicidade do Estado, no Brasil e em outros países, em suas dimensões políticas, culturais e ideológicas, seus avanços e recuos. Para alcançar esse objetivo, realiza pesquisas, promove eventos acadêmicos e divulga seus resultados. Divulga, também, documentos de pessoas e grupos empenhados nessa construção, assim como trabalhos sobre laicidade na ordem do dia.

A imparcialidade diante dos conflitos do campo religioso é o princípio da laicidade do Estado, que corresponde à soberania popular em matéria de política e de cultura. Corretamente entendido, o Estado laico não apóia correntes religiosas direta nem indiretamente, explícita nem implicitamente. Tampouco professa uma ideologia irreligiosa ou anti-religiosa. A laicidade do Estado é pré-condição para a liberdade de crença garantida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e pela Constituição brasileira de 1988. Disponível aqui