A aprovação de um indicativo para implementação do Conselho de Comunicação Social do Ceará foi propagada como medida obscurantista pela maioria da grande imprensa e radiodifusão brasileira. A iniciativa da deputada Raquel Marques (PT), aceita por unanimidade pela Assembléia Legislativa e encaminhada para o governador reeleito Cid Gomes (PSB), foi tachada como perigo à liberdade imprensa e expressão pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), Associação Nacional de Jornais (ANJ) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Já o Ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello disse (Jornal Nacional, 21/10/2010) que nem a lei, nem órgão administrativo, podem criar quaisquer embaraço à informação jornalística.
Abert, ANJ, o ministro do STF e setores da mídia distorcem os fatos para amedrontar a sociedade sobre o papel dos Conselhos. Não é uma resolução da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) a instalação desses órgãos. A Constituição Federal, no Art, 224, já prevê a instalação do Conselho de Comunicação Social pelo Congresso Nacional, a fim de regulamentar os artigos 220, 221, 222 e 223, do Capítulo V da Carta Magna. Infelizmente o Senado, responsável pelo Conselho, o mantém desativado.
Em nível estadual, Constituições como do Pará, Bahia, Alagoas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Goiás também prevêem a convocação de Conselho Estadual. Assim, a I Confecom buscou orientar para complementaridade entre União, Estados e Municípios, atenta para o fato de nenhuma política pública no país se constituir sem a participação dos três entes federativos.
No caso dos Conselhos Estaduais não há nada a temer entre suas funções deliberativas, consultivas e fiscalizatórias. As Constituições dos estados brasileiros costumam destacar a comunicação nas responsabilidades, culturais, sociais e econômicas, a exemplo do Ceará. Envolver a comunicação nesses termos já é mérito destacável. Resoluções na Organização das Nações Unidas (ONU) apontam para essas atribuições dos governantes há cerca de 50 anos, em especial no processo que desencadeou o relatório ‘Um Mundo e Muitas Vozes – Comunicação e informação na nossa época’, lançado em 1981 e considerado até hoje o documento mais completo sobre os desafios do setor para as sociedades modernas.
Entre os problemas elencados pelo relatório estão as disparidades regionais e a concentração econômica; e, curiosamente, o Brasil já é citado como exemplo negativo neste quesito. No caso da legislação e estrutura administrativa nacional, o condensamento de atribuições da União na comunicação é uma das características que representam sua defasagem. Tal situação impede o Estado de atenuar as desigualdades e incluir a comunicação como vetor de um desenvolvimento socioeconômico horizontalizado.
Durante a I Confecom, setores empresariais participaram até o fim, como a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA) e Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil). Uma das condições impostas por esses setores foi vetar a votação de propostas em estados e municipios. A medida, apelidada de ‘AI-8’ da Confecom, visava estancar a intensa mobilização das Comissões Pró Conferência (CPC), diretamente responsáveis em tornar a Confecom irreversível. Impedia-se assim que a sociedade civil se apropriasse das complexas pautas negociadas nos Grupos de Trabalho (GT) e no plenário da Confecom, posteriormente no Congresso e na agenda eleitoral nos três níveis da Federação. Ao final, a implementação de Conselhos foi uma das poucas resoluções da Confecom que apontou para a descentralização.
Finalizada a Confecom, alguns estados e municípios e a sociedade civil conseguiram ultrapassar os limites do poder federal. Na Bahia, a I Conferência Estadual de 2008 sinalizou que as forças regionais começavam a se movimentar com relativa autonomia. O processo foi considerado alavancador da Confecom e teve a implementação do Conselho como ponto prioritário entre governo, sociedade civil e empresários, com um projeto de lei pronto para ser enviado à Assembléia ainda em 2010.
No Piauí, governado por Wellington Dias (PT), foi desenvolvido uma Unidade de Políticas Públicas de Comunicação, voltada para radiodifusão comunitária, e depois da Confecom encaminhado um projeto de lei para o Conselho Estadual; em Sergipe, um GT formulou propostas para fortalecimento da radiodifusão pública local, em Pernambuco a TV pública passa por renascimento, ambos com ampla participação da sociedade. No Ceará, a CPC local se constituiu como Rede Cearense pela Comunicação (Redcom) e formulou a proposta de Conselho Estadual encampada pela parlamentar petista.
Vale ressaltar que as propostas de Conselho no Ceará, São Paulo, Alagoas, Bahia e Piauí prevêem a participação empresarial, em proporção muito superior à média dos demais Conselhos de políticas públicas, como saúde e educação. Na Bahia, entidades empresariais participaram ativamente do Grupo de Trabalho que finalizou uma proposta de consenso do Conselho, atualmente sob estudo pela Procuradoria Geral do Estado.
Vácuos históricos
Tais propostas estaduais, em especial os Conselhos, caminham sob vácuos históricos do setor, nos quais valem destacar: estrutura administrativa, racionalização das verbas publicitárias, fortalecimento do sistema público, observatório das violações aos direitos humanos na mídia, acompanhamento da utilização do espectro e liberação de outorgas e também da qualidade dos serviços de telecomunicações.
O primeiro vácuo é que os governos estaduais não detêm estruturas administrativas aptas para tocar as políticas de comunicação sob interesses sociais e como vetor de desenvolvimento. Geralmente as secretarias de comunicação são meras assessorias de imprensa do governo e responsáveis por distribuir as verbas publicitárias. São desarticuladas as ações das emissoras públicas, empresas gráficas, ouvidorias e até secretarias, em especial as com relações mais diretas com a comunicação, a exemplo das de Cultura, Educação e Ciência e Tecnologia. Dessa forma, o Conselho tem o papel de auxiliar o governo na condução de pontos convergentes entre órgãos que podem dar corpo coerente aos Planos Estaduais de Comunicação e, futuramente, às secretarias dotadas de estrutura humana e física apropriada.
Racionalização publicitária
O segundo vácuo é o planejamento de políticas estaduais com participação da sociedade civil e atentas para os gastos com publicidade e propaganda. Atualmente as políticas estaduais são focalizadas em distribuir volumosas verbas de publicidade e propaganda. Em 2009, os governos estaduais gastaram R$ 1,69 bilhão nesse quesito, valor em crescimento progressivo ano a ano. São Paulo é o recordista e representa 20% deste total, com R$ 311 milhões (cf. Folha de S.Paulo, 24/5/2010).
Esse montante torna os poderes executivos anunciantes de peso – provavelmente os maiores – no varejo local e reproduzem a mesma lógica nacional: se beneficiam desses recursos aqueles que detêm maior audiência, tiragem ou acesso, critérios ‘técnicos’ utilizados para distribuição das verbas oficiais.
Ainda nas verbas de propaganda, é notória a ausência de transparência na sua destinação. O caminho tradicional do repasse desses recursos é a contratação de agências de publicidade que compram os anúncios no varejo – caracterizando uma relação entre iniciativa privada – a preços livres de concorrência, deixando a sociedade e órgãos de fiscalização de gastos, como os tribunais de contas, sem parâmetros claros do destino final e da quantidade dos recursos alocados.
Já os pequenos e médios veículos, sem condições de medir ou alcançar percentuais significativos nos critérios de contratação das agências, ficam vulneráveis a terem afinidades com a linha editorial das assessorias de comunicação dos governos para tentar receber parte deste recurso.
Neste cenário, os Conselhos podem se tornar espaços de racionalização das verbas publicitárias, protegendo empresas jornalísticas e governos. Ganha o cidadão ao ter jornalismo autônomo, sem embaraços econômicos e políticos, e também informações sobre a legalidade e viabilidade dos gastos públicos em publicidade.
Fortalecimento do sistema público
O terceiro vácuo é o fortalecimento dos veículos de caráter público. As emissoras públicas são historicamente sucateadas, com baixos níveis de audiência. Enquanto a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) se estrutura com relativa velocidade em nível nacional, as TVs estaduais continuam sob ingerência do poder Executivo e a ausência de fontes perenes de financiamento.
Às emissoras comunitárias são negados programas em complementaridade às demais políticas sociais e as verbas publicitárias são proibidas pela lei. Não é novidade o papel da comunicação para o desenvolvimento socioeconômico e promoção de valores compatíveis com a dignidade humana. Nas periferias dos centros urbanos e na zona rural brasileira, os veículos comunitários são alternativas viáveis para informes educativos e valorização cultural. Liberar novas outorgas comunitárias não altera tal panorama, porque o comunicador, sem mecanismos de sustentabilidade, fica à mercê de ‘padrinhos’ políticos ou religiosos, deteriorando a qualidade da informação.
É papel do Estado promover a sustentabilidade da radiodifusão pública e comunitária, conforme aponta a Organização dos Estados Americanos (OEA), na sua Relatoria Anual para Liberdade de Expressão. Para a OEA, a concentração da propriedade comercial da radiodifusão tem efeito similiar à censura: o silêncio.
Os Conselhos Estaduais podem se tornar espaços embrionários na elaboração de políticas com participação social, não só para revisão do caráter das verbas publicitárias, mas também de diagnósticos, desenvolvimento de fundos de fomento, cursos, redes e assessoria técnica para os veículos comprometidos com a diversidade e pluralidade, desafogando a União de responsabilidade sobre esses meios.
Observatório das violações aos direitos humanos
Um órgão administrativo do Executivo estadual, como o Conselho, não tem competência legal para interferir no conteúdo dos meios de comunicação. O quarto vácuo cumprido por estes órgãos é de observar às violações aos direitos humanos e encaminhar relatórios para o Ministério Público Estadual ou Federal tomar as providências necessárias.
Atualmente a grade regional é abarrotada por programas policialescos, transmitidos em horários inapropriados para crianças e adolescentes, permeados de sangue, criminalização de grupos historicamente discriminados e setenciamento ilegal.
O Ceará teve três programas notificados pelo Ministério da Justiça em 2004, quando se tentou efetivar a classificação indicativa: Barra Pesada, da TV Jangadeiro (SBT); Cidade 190, da TV Cidade (Record); e Rota 22, da TV Diário (Globo). Na Bahia um monitoramento entre os meses de janeiro e julho de 2010 sistematizou este conjunto de violações.
Neste quesito, os Conselhos se tornam espaços fundamentais para institucionalizar as denúncias, buscando interlocução direta com os empresários, que detêm cadeiras cativas na sua composição, bem como estimular intervenções do Ministério Público junto ao poder Judiciário.
Utilização do espectro
A liberação de outorgas de radiodifusão é de competência da União, segundo a Constituição Federal. O trâmite para obter uma concessão já é dotado de pouca transparência e envolve as comissões temáticas do Congresso, fartamente frequentadas por políticos radiodifusores. A sensação de impunidade se reverte na utilização do espectro. É comum rádios e TVs pelo país expandirem suas transmissões para localidades onde não foram licenciadas ou mesmo continuarem a operar com o prazo do contrato expirado. Caberia então ao Conselho Estadual encaminhar à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e ao Conselho Nacional relatórios sobre a utilização do espectro e dar maior transparência local aos processos de outorgas.
No caso das emissoras comunitárias, o caminho para obter uma outorga começa pela barreira técnica, à qual as comunidades mais humildes têm dificuldade de responder. São comuns os políticos e/ou religiosos que se especializaram em preencher tais requisitos para trocar favores políticos com os comunicadores. O quinto vácuo do Conselho Estadual se conclui ao prestar assessorias técnicas aos comunicadores comunitários e acompanhar o processo de liberação de outorgas, a fim de atenuar, na origem, as distorções na radiodifusão comunitária.
Serviços de telecomunicações
Na década de 1990, a privatização das telecomunicações tornou os governos estaduais meros recolhedores e impostos nesse segmento. O Imposto de Circulação de Mercadorias (ICMS) nas teles costuma encarecer os serviços, representando até 60% do valor total em nível estadual – em alguns casos o montante é superior a armamentos e cosméticos, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A arrecadação do ICMS é distribuída para diversas políticas, como saúde, educação e segurança pública, mas as políticas de comunicação ficam órfãs do que movimentam economicamente.
O resultado é que os governos estaduais se limitam a aplicar iniciativas de inclusão digital via telecentros e parcerias com empresas de telecomunicações para prover internet em escolas públicas. Ações que pouco interferem para atenuar as disparidades regionais do setor e promover a universalização no acesso à internet em alta velocidade (banda larga), telefonia fixa ou mesmo barateamento das tarifas na telefonia móvel. Esse é o sexto vácuo a se destacar das políticas estaduais.
Caberia então aos Conselhos Estaduais encaminhar sugestões para o poder Executivo e à Assembléia Legislativa para promover a expansão desses serviços. Podendo cogitar, inclusive, a reativação das empresas estatais de telecomunicações, em complementaridade à Telebrás. Também se faz necessário um órgão que dê legitimidade às denúncias de abusos cometidos pelas empresas e as redirecione à Anatel e Conselho Nacional.
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Jornalista, repórter do Observatório do Direito à Comunicação e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social