Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A manipulação do aborto

Como em um passe de mágica, o aborto tornou-se o grande tema das eleições presidenciais deste ano. Em poucos dias, um assunto para o qual raramente a imprensa volta seus olhares virou a principal pauta de grande parte dos veículos de comunicação, ocupando páginas e mais páginas dos principais jornais e revistas do país. Seria leviano afirmar que o tema foi introduzido na agenda nacional pela equipe de campanha de José Serra – embora o candidato tenha se esmerado em colher seus dividendos políticos. Mas, como mostram dados que levantamos ao longo dos últimos 50 dias – de 1º de setembro a 20 de outubro –, podemos afirmar com absoluta certeza que houve um esforço coordenado e eficiente dos principais jornais e revistas do país para insuflar a polêmica sobre o tema com vistas a um fim eleitoral mais que óbvio: roubar votos de Dilma entre eleitores conservadores contrários à descriminalização do aborto.


Durante estes 50 dias, medimos as menções ao tema ‘aborto’ em 29 publicações – entre elas os jornais O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo; e as revistas Veja e Época. Os dados foram obtidos da resenha diária de jornais e revistas elaborada pela Câmara dos Deputados. Essa resenha privilegia matérias publicadas nas seções ‘Brasil’ e ‘Política’. Se, por um lado, essa mostra pode ter gerado uma sub-contagem do número de menções do termo ‘aborto’, ao não trazer a totalidade das matérias publicadas no período, por outro fez com que essa contagem se focasse em artigos com maior relevância na disputa eleitoral. E, mesmo com essa possível sub-contagem, os números impressionam.



A polêmica e a novidade


Como se pode perceber no gráfico, há um notável desequilíbrio da distribuição das menções ao termo aborto, com dois picos visivelmente pronunciados: em 30 de setembro, com 149 menções, e em 8 de outubro, com 430 menções. Também fica muito visível o timing da publicação de matérias sobre o aborto. A primeira escalada de citações do termo ocorre nos dias 30 de setembro e 1º de outubro, com 149 e 67 menções, respectivamente – estávamos a dois dias do primeiro turno. A segunda se inicia logo depois do dia das eleições: 37 menções em 4 de outubro, 79 no dia 5, 219 no dia 6, 343 no dia 7 e impressionantes 430 no dia 8. Salta aos olhos o objetivo eleitoral desse timing.


A primeira escalada ocorre pouco antes do primeiro turno e tem como objetivo conquistar os votos de indecisos e de dilmistas não muito convictos. A segunda, bem mais intensa, busca transferir para Serra os votos de um grande contingente de eleitores conservadores – sobretudo católicos e evangélicos – contrários à descriminalização do aborto. Bom ressaltar que a segunda escalada ocorre na primeira semana após a realização do primeiro turno, justamente o período em que a maior parte daqueles que votaram em candidatos derrotados decidem o seu voto para o segundo turno.


Corrobora essa tese o fato de que, em uma análise qualitativa preliminar das matérias pode-se notar a construção simbólica de duas forças antagônicas sobre o aborto: Dilma, a ateia, cujas declarações contraditórias revelariam sua verdadeira opinião em favor da descriminalização da prática; e Serra, o religioso, que seria historicamente contrário à descriminalização. Ressalte-se que esta análise qualitativa ainda está sendo realizada, mas os primeiros dados corroboram fortemente a tese da construção desse antagonismo simbólico.


Uma mente mais cética questiona: não poderia ter sido isso uma grande coincidência? O tema aborto não teria entrado em pauta e ganhado tanto destaque simplesmente por um acaso do destino? Uma regra de ouro para um tema entrar ou não em pauta é o seu valor-notícia. E, dentre diversos fatores, dois são fundamentais no cálculo desse valor: a polêmica e a novidade. Caso encontrássemos fatores que dessem ao aborto esse valor-notícia estrondoso, que justificasse uma cobertura mais que intensa da mídia brasileira e justamente em momentos cruciais da definição das eleições, nossa hipótese iria por água abaixo.


Ação que empobreceu o debate


Que há polêmica sobre o aborto, não resta dúvida. Mas, e a novidade? Havia fatos novos que justificassem a publicação de matérias sobre o aborto justamente nesses períodos críticos das eleições? E há valor-notícia que justifique a manutenção de níveis altos de menção ao aborto nesse período entre o primeiro e o segundo turno das eleições? Pelo que pudemos analisar, a resposta é não para todas as questões. O único fato verdadeiramente novo sobre o tema que encontramos na mostra analisada ocorreu em 23 de setembro, no debate entre presidenciáveis organizado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Na entrada do auditório da Universidade Católica de Brasília, onde foi realizado o debate, um grupo de 15 católicos e evangélicos estendeu uma faixa na qual se lia: ‘Dilma Anticristo, nós cristãos não matamos’. Segundo eles, Dilma seria a favor do aborto.


O acontecimento gerou 40 menções ao termo aborto nos jornais no dia 24 de setembro. E só. Pouco se falou sobre o tema nos dias seguintes. Até que, no dia 30/9, houvesse 149 menções ao termo devido à promessa de Dilma de não legislar sobre o tema. A declaração era resposta a uma onda de boatos, que havia se intensificado na internet nos dias anteriores, segundo os quais a petista seria favorável ao aborto. E a partir daí os únicos acontecimentos novos foram especulações ou declarações de ambos os candidatos sobre o tema.


O número de menções ao termo aborto, a falta de elementos jornalísticos que justifiquem tantas matérias sobre o tema e o timing de concentração das menções, que coincidem com momentos críticos das eleições, demonstram que a grande imprensa exerceu um papel fundamental no agendamento do tema aborto, com intuitos eleitorais muito evidentes. A ação da mídia empobreceu e continua empobrecendo o debate eleitoral ao quase centralizar a disputa em um único tema. Perde o eleitor. Perde a opinião pública. Perde o país. Mas ganhamos nós, analistas da mídia, que podemos observar em tempo real e com grande riqueza de detalhes as peripécias que a nossa imprensa anda realizando.

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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e consultor legislativo da Câmara dos Deputados; editor do blog Museu da Propaganda