Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Igreja católica nas eleições

As eleições presidenciais deste ano tiveram dois poderosos partidos que não estão oficialmente registrados na Justiça Eleitoral, mas que foram fundamentais na pauta do debate político, principalmente no segundo turno. O primeiro partido é o da Grande Mídia. A grande imprensa prestou um enorme desserviço à democracia brasileira ao apresentar-se como partido político. Pautou todo o segundo turno da campanha.

Analisando os principais temas do debate entre os dois candidatos, salta ao olhar até de um desatento que toda a temática, principalmente aquela alavancada pela campanha de Serra, foi criada artificialmente pela mídia. Qualquer pessoa poderá fazer um retrospecto do segundo turno a partir da pauta ostensivamente apresentada pelos veículos de comunicação. E neste sentido é lamentável que o renitente ‘quarto poder’, a cada nova eleição, mesmo transmutado em (mentirosa) isenção, continue na frustrada tentativa golpista de determinar os rumos do país, a partir dos interesses escusos responsáveis pela assunção e consolidação da grande mídia nas terras tupiniquins.

O outro partido, objeto desta análise, é o das religiões. Aqui, um recorte específico ao papel da maior das igrejas presente em nosso país, a católica romana, nestas eleições. Dois projetos de Brasil estiveram em jogo no segundo turno das eleições presidenciais. E no interior da Igreja católica grupos antagônicos se evidenciaram durante o processo eleitoral, principalmente no segundo turno.

‘Igrejas atreladas aos interesses dos poderosos’

De um lado, estava a Igreja das catedrais: aquela que sempre esteve ligada aos ricos e poderosos. Que aprecia a ostentação e o luxo. Que vive de uma fé desencarnada, exorcizando em rituais pirotécnicos as injustiças cometidas contra a maioria dos miseráveis e excluídos brasileiros. Os setores conformados com as elites opressoras que pregam um deus do conformismo, da resignação, que não se importam com os clamores do povo e estão alheios à opressão imposta pela política neoliberal, pelo capitalismo selvagem, pela cultura do espetáculo – enfim, pela civilização do egoísmo, do individualismo e da morte.

É a igreja que gosta de chamar o povo de ‘fiel’: ovelhas mansas, meio hipnotizadas, sem autonomia, que não têm consciência crítica da realidade e que acham que o reino de Deus só é possível depois da morte. Esse grupo está horrorizado pelo fato de que a maioria dos pobres brasileiros, depois quinhentos anos de submissão político-eclesial, passou a ter voz e vez. Os pobres não carecem mais de certas mediações (intérpretes divinos) que não os libertam; ao contrário, os oprimem. Parte dos membros dessa igreja criticam os programas assistenciais do governo numa paradoxal contradição com a prática desses mesmos segmentos eclesiais que sempre defenderam a esmola – que submete e oprime o pobre, sem libertá-lo e promovê-lo à dignidade de cidadão.

Existem, obviamente, muitos grupos eclesiais intermediários, que oscilam entre a cultura da promoção humana ou do assistencialismo às pessoas. Mas existe uma significativa parte de cristãos católicos, que tem se avolumado, formada pela igreja das capelas: as milhares de pequenas capelas, inacabadas, sem qualquer possibilidade de luxo, espalhadas pelas periferias das grandes cidades, pelos recantos e grotões das áreas rurais.

Os membros desse modelo de igreja defendem um projeto de Reino de Deus que pode ser realizado aqui na terra, protagonizado pelo povo sofrido (aquele mesmo povo que foi liberto pelo Deus de Jesus Cristo da opressão do Egito, como está escrito na Bíblia). Uma igreja a partir da experiência da ‘vida e morte Severina’ – a imagem-síntese das desventuras de nosso povo sofredor. Nesta igreja, o pobre ocupa um lugar epistemológico central; ou seja, o pobre, maioria dos brasileiros, constitui o lugar a partir do qual se articula o conceito de Deus e a missão da igreja no mundo.

Como escreve Leonardo Boff, ‘a partir da perspectiva do pobre nos damos conta do quanto as atuais sociedades são excludentes, do quanto as democracias são imperfeitas e as religiões e Igrejas atreladas aos interesses dos poderosos’ (Dignitas Terrae: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo, Ática, 1995).

Um grito retumbante de continuidade

Nas eleições presidenciais e nas disputas intraeclesiais estava em jogo o princípio original da espiritualidade e ética cristã. Um sim incondicional à vida humana – que é negada à grande maioria dos pobres e excluídos de nosso país –, ou o comodismo, responsável por mais de 500 anos de opressão, de exclusão e martírio de índios, negros, pobres, trabalhadores.

Entre a igreja da cristandade, aquela que mantém estreita relação com os poderosos, e a Igreja dos pobres existe um abismal fosso. Uma cristologia de tipo ocidental e europeu, marcada pelo signo da dominação dos mais fortes e submissão dos fracos, e uma cristologia que procura reinterpretar o Evangelho tendo como referência as injustas situações das maiorias empobrecidas e oprimidas, resultado do capitalismo colonialista e do neoliberalismo econômico que permitem a uma minoria privilegiada, cerca de 20% dos comensais humanos (mesma porcentagem em relação à população brasileira), sentar-se no banquete dos bens terrestres, em detrimento de quase 80% dos filhos de Deus, que clamam por justiça.

Não há porque temer essas disputas e lutas dentro da igreja católica. As divergências entre esses e outros grupos têm aspectos positivos, pois têm propiciado a reinvenção de uma Igreja, no Brasil, que nasce do povo oprimido e sofrido e que, a partir dessa base, pode ser protagonista na construção de uma sociedade mais justa, solidária e fraterna.

O resultado do segundo turno das eleições mostrou, claramente, que a Igreja das Capelas falou mais alto e, democraticamente – em paradoxal oposição ao modelo da Igreja das Catedrais –, prevaleceu sua vontade: seu grito retumbante de continuidade, com mudança.

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Doutorando em Ciências Sociais (PUC Minas) e professor universitário