Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Caubói solitário

‘E eu fui atrás dele. Nem bem dei uns cinco passos quando o estrondo de uma explosão povoou inteiramente os meus ouvidos. Um zumbido agudo e interminável brotava na minha cabeça. Uma nuvem negra de fumaça fez desaparecer tudo à roda e eu tive a impressão, nítida, de que a bomba explodira exatamente em cima do soldado Henry. Quando a fumaça se dissipou um pouco e eu ainda não via Henry, imaginei que ele tivesse sido projetado para longe e a essa hora já devia até estar morto. Ele apareceu na minha frente de repente, com o rosto transformado numa máscara de horror. (…) Senti-me sentado e não descobri por quê. Entrevi Shimamoto, saindo da fumaça, e ainda lhe perguntei: ‘Shima, você está ok?’ Ele trazia um cigarro aceso e tentou colocá-lo na minha boca. Não aceitei. Sentia na boca um gosto ruim, como se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue – hoje eu sei, era o gosto da guerra. Cuspia, cuspia, mas aquela gosma amarga permanecia na boca. Então senti um repuxão violento na perna esquerda e só aí tive consciência de que a coisa era comigo.’

O relato acima está no livro de memórias O Gosto da Guerra (Objetiva, 2005), do grande repórter brasileiro José Hamilton Ribeiro. É do exato instante em que, em 20 de março de 1968, o correspondente da revista Realidade pisa em uma mina no Vietnã e perde a perna esquerda. A cena, com poucos retoques, serve para descrever o acidente ocorrido 42 anos depois, no sábado, dia 23, no Afeganistão – envolvendo o fotógrafo português João Silva, de 44 anos. Assim como Zé Hamilton, João seguia um grupo de soldados americanos em terreno minado. Como ele, pisou no que os militares chamam de IED: Improvised Explosive Device, construído em madeira ou plástico, e de difícil detecção pelos sensores e cães farejadores que o precederam. O infortúnio de João, porém, foi ainda maior, e ele teve as duas pernas amputadas dos joelhos para baixo.

Casado e pai de dois filhos, João cobria a guerra do Afeganistão pelo New York Times, depois de ter estado nos principais conflitos armados do mundo nas últimas décadas, do Iraque ao Líbano, passando pela Geórgia e conflitos étnicos no continente africano. Por eles, ganhou inúmeros prêmios, entre eles o prestigiado World Press Photo. O imigrante nascido em Lisboa era o último correspondente de guerra ainda em atividade de um grupo de jovens freelancers que fez história no início da década de 90 na África do Sul. Ao lado de Greg Marinovich, Ken Oosterbroek e Kevin Carter, todos rapazes brancos de classe média, João cobriu a guerra civil que incendiou o país de 1990 a 1994, nos anos que antecederam a queda do apartheid e a chegada ao poder de Nelson Mandela.

Raiva e dor

Munidos de máquinas fotográficas manuais e disposição pela notícia, os quatro se embrenharam nas cidades-dormitório de Johannesburgo em que os zulus do Partido da Liberdade Inkatha (PLI), aliados estratégicos do governo racista, enfrentavam partidários do Congresso Nacional Africano (CNA), de Mandela. Naqueles anos em que, na descrição do arcebispo da Cidade do Cabo Desmond Tutu, ‘o terrível derramamento de sangue parecia endêmico’ no país, os quatro testemunharam – e registraram em película para que o mundo pudesse crer – assassinatos, linchamentos e torturas brutais envolvendo homens, mulheres e crianças. Cenas que transcorriam diante de seus olhos, às vezes ‘a um braço de distância, perto demais’, nas palavras de Greg, o mais eloquente dos rapazes. Uma dessas imagens – a que mostra um partidário do CNA desferindo um golpe de panga, o facão local semelhante a um machete, no crânio de uma vítima em chamas – rendeu-lhe o prêmio Pulitzer de Reportagem em 1990. Outra foto, esta de João, capta de um ângulo assustadoramente próximo o momento em que um agressor mutila o corpo de um zulu caído, em plena luz do dia.

A força desses instantâneos abriu os olhos do mundo para a barbárie que ocorria ali. Mas também despertou críticas quanto à inação dos fotógrafos para impedir tais violências. O artigo ‘Bang Bang Paparazzi’, publicado à época na revista sul-africana Living, colou o rótulo no quarteto de Johannesburgo.

Inicialmente chateados com o rótulo de Clube do Bangue-Bangue, Greg, João, Ken e Kevin resolveram assumir o apelido. O que não aliviava, porém, os dilemas éticos que os assombravam. ‘Às vezes nos sentíamos uns abutres. Pisamos em cadáveres, metafórica e literalmente, e fizemos disso o nosso ganha pão’, confessam Greg e João no livro que escreveram sobre o período, O Clube do Bangue Bangue – Instantâneos de uma guerra oculta (Companhia das Letras, 2002).

O Clube iria se desfazer de modo trágico em 18 de abril de 1994, quando, durante um intenso tiroteio em Thokoza, Greg e Ken foram baleados. O primeiro sobreviveu, após diversas cirurgias. O segundo não resistiu. ‘Por muito tempo depois disso, João me dizia se sentir mal, pois a última coisa que fez por Ken foi tirar fotos dele morto’, contou Greg Marinovich, por telefone, ao ‘Aliás’. Nos dias que se seguiram, o PLI viria a público dizer que concordava em participar da eleição, a violência arrefeceu e Nelson Mandela ousou dizer: ‘Esperemos que Ken Oosterbroek tenha sido a última pessoa a morrer’.

Kevin, único dos quatro que não estava presente naquele fatídico mês de agosto – ganhador de outro Pulitzer em 1993, pela famosa imagem de um abutre espreitando uma criança faminta no Sudão – cometeria suicídio três meses depois. No bilhete que deixou à família, se disse deprimido, sem dinheiro e perseguido ‘pela viva lembrança de assassinatos, cadáveres, raiva e dor’.

O melhor do mundo

Até quinta-feira (28/10), Greg, que depois que se casou e se tornou pai de dois filhos não mais fotografa guerras, preferindo dedicar-se à sua produtora de documentários em Johannesburgo – ainda não havia falado com João, que continuava sedado em um hospital na Alemanha. ‘Ele é o melhor fotógrafo de guerra do mundo hoje. E sempre foi apaixonado pelo que faz, embora nos últimos tempos tenha me dito que, cedo ou tarde, teria que parar de se expor tanto. A atividade, hoje, é cada vez mais perigosa, pois os correspondentes de guerra tornaram-se alvos preferenciais e as empresas de comunicação não conseguem mais bancar seus custos. Muitas optam por comprar fotos digitais dos próprios civis nas áreas de confronto.’

Nos próximos dias, o fotógrafo deverá ser transferido para o Walter Reed Army Medical Center, o hospital dos veteranos em Washington, para completar sua recuperação. Solidário com o drama do colega, Zé Hamilton Ribeiro adianta que serão muitas as dificuldades. ‘O cérebro leva algum tempo para se adaptar. Nos primeiros meses, eu me levantava à noite para ir ao banheiro como se ainda tivesse as duas pernas, e caía no chão.’ O jornalista brasileiro, que aos 75 anos ainda trabalha no programa Globo Rural, não acredita que João Silva irá abandonar a profissão. ‘Os americanos chamam os repórteres de legman, homens-perna, por causa de sua necessidade de deslocamento para buscar informações. Mas nada é empecilho quando se tem cabeça e coração de repórter.’

A julgar pela reação do fotógrafo português instantes depois da explosão que o mutilou, o mestre brasileiro está certo. Enquanto os paramédicos do Exército apertavam torniquetes para estancar a hemorragia e lhe aplicavam morfina, consta que fez dois pedidos. A um, que pegasse seu inseparável maço de Marlboro no bolso da calça e lhe acendesse um cigarro. A outro, que alcançasse a câmera fotográfica caída logo adiante. E pôs-se a fotografar a si próprio, os soldados, a cena fumegante do acidente. Talvez João Silva nunca mais volte ao campo de batalha. Talvez ganhe enfim, por essa trágica sequência final, o seu Pulitzer. Pouco importa.