Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Amicus curiae virtual

A Folha de S.Paulo ajuizou em 25 de outubro de 2010 uma ação cautelar no Supremo Tribunal Federal (nº 2727), cuja intenção é obter o acesso às cópias do processo penal número 366/70, no Superior Tribunal Militar, em que foi ré a candidata Dilma Roussef.

A ação cautelar foi distribuída à ministra Cármen Lúcia. Ao receber o processo, ela determinou que fosse ouvido o presidente do Superior Tribunal Militar, bem como que a Folha juntasse cópias do recurso extraordinário que citava no corpo da petição inicial.

O presidente do Superior Tribunal Militar e a Folha atenderam aos pedidos da ministra e a cautelar, agora, está nas mãos dela e pode ser despachada a qualquer momento.

Por que a Folha, na ante-sala do voto, quer trazer de volta ao debate o processo imposto pela ditadura militar contra a candidata Dilma Rousseff?

Carta Maior, cujo nome é inspirado justamente na Constituição Federal do país, abriu espaço para que um Amicus Curiae – um amigo do tribunal ou, em termos literais, um amigo da corte – possa expor a verdadeiro objetivo desta ação, aliado à falta de fundamento legal para o seu pleito.

A figura do amicus curiae, o amigo do Tribunal, tornou-se rotineira no sistema jurídico através da lei 9.868/99, art. 7º, parágrafo 2º (O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades).

Em uma medida cautelar como a que a Folha ingressou, o amicus curiae formal dificilmente seria aceito, visto que a admissão dele estaria vinculada às Ações Direta de Inconstitucionalidade e Declaratória de Constitucionalidade.

No entanto, um amigo do tribunal, alguém que tenha interesse em informá-lo e, por que não, também à sociedade, pode fazê-lo fora dos autos.

Desorganização ou má intenção?

A Folha está preocupada em informar o cidadão brasileiro sobre a vida e a militância da candidata Dilma Rousseff durante a ditadura militar. Tais informações, segundo alega, somente podem ser obtidas por meio do acesso aos arquivos que estão no Superior Tribunal Militar.

Há, aí, desde logo, um problema ético. A atuação da candidata Dilma Rousseff durante a ditadura não pode ser medida pela régua de um processo dirigido pela supremacia do torturador sobre a vítima indefesa.

Qualquer informação contida nestes arquivos estará parcial ou, mais provavelmente, contaminada na íntegra por esse indutor de violência conhecida e comprovada. Ademais, qualquer condenação que tenha sido imposta à candidata Dilma, por um Estado de Exceção, foi acobertada pela Lei da Anistia.

Mas a Folha está preocupada em informar o cidadão brasileiro, o que, além de louvável, não deixa de ser uma surpresa. Justo neste momento, a Folha resolveu colocar-se como defensora da liberdade de imprensa e reputa como de indiscutível interesse público informações contidas em um processo penal dirigido e com provas obtidas pelas mãos e métodos criminosos.

Ressalvadas as deformidades das informações aí contidas, é evidente, no entanto, que se trata de documento – até para a ilustração do regime que o promoveu – dotado de algum interesse histórico. O acesso a ele deveria ser franqueado a todos, assim como todos os arquivos da época da ditadura deveriam ser abertos ao público, que tem o direito à memória e à história da sociedade em que vive.

Visto desse ângulo, teria pertinência o pedido da a Folha de acesso aos autos, justo neste momento?

A resposta é não, por dois motivos:

a) em primeiro lugar porque ela já obteve o que reivindica. Em 12 de março 2009, por meio da jornalista Fernanda Odilla, o jornal já extraiu cópias do processo em questão;

b) sobretudo, porém, não há interesse público algum neste material datado e induzido pelo regime de exceção, no momento. Exceto o interesse unilateral da Folha e, eventualmente, o da própria candidata Dilma Rousseff que, todavia, jamais se manifestou nesse sentido.

Há, no entanto, circunstâncias antecedentes que autorizam suspeitar das motivações mais profundas que orientam o pleito do veículo paulista.

A Folha, em 2009, produziu a matéria intitulada ‘Grupo de Dilma planejava seqüestrar Delfim’. Esta matéria foi rechaçada, de forma veemente, pelo jornalista Antonio Roberto Espinosa.

Ou seja, quando teve acesso aos documentos do processo da candidata Dilma, a Folha já fez deles um uso distorcido que reforçam as suspeitas em torno dessa segunda investida, em curso há dois meses.

A verdade é que os reais interesses que movem a Folha não são pautados pelo interesse público. A Folha deseja, como já o fez, elaborar matéria depreciativa, partindo de dados (que já tem, porém legitimados pela autorização desta Corte) produzidos há quarenta anos por métodos e motivações de um regime de exceção instruído com elementos de prova produzidos por criminosos travestidos de agentes do Estado.

Interesses individuais foram argüidos pelo STM ao negar o novo acesso, no meio da campanha eleitoral. Entretanto, estes são os direitos mais caros aos cidadãos e que são os pilares de uma democracia: privacidade, dignidade da pessoa humana, honra e imagem. Ou um candidato à Presidência da República não pode ter tais direitos preservados? Evidente que sim. A candidata Dilma é, antes, a pessoa humana Dilma.

Ela estava no Brasil, lutando pela democracia. Foi perseguida, presa, torturada e processada por seus algozes. A Folha quer agora surfar eleitoralmente nos resultados de um processo violento pautado pelo pau-de-arara, choques e agressões morais.

A Folha jamais poderá ter acesso a tais documentos? Estamos convencidos que o acesso deve ser franqueado; a Folha pode produzir a matéria que bem entender sobre a candidata Dilma ou qualquer outro candidato. Mas, neste momento, o que está sendo chamado de liberdade de imprensa serve justamente para fraudar o processo da liberdade democrático em um de seus mais sagrados momentos: o voto universal dos brasileiros e brasileiras.

Sejamos francos, a Folha tem os documentos do processo. Certamente, não os perdeu. Deseja novas cópias para esquentar e legitimar a matéria já citada que, no ano passado, foi ridicularizada pela opinião política do país.

Nem a revista Veja, que pediu cópia do mesmo processo, em 26 de fevereiro de 2010, por meio do repórter Luiz Otávio Bueno Cabral, teve coragem de prosseguir na empresa de violar a vida privada, a intimidade, a honra e a imagem da candidata Dilma.

Dentro de uma idéia de proporcionalidade e choque de interesses, todos protegidos pela Constituição Federal (liberdade de imprensa, dignidade da pessoa humana e liberdades individuais), neste momento, parece-nos que liberar para cópias um processo penal, cuja processada já foi anistiada, é subverter a Carta Maior. Depois de publicada a matéria, nenhuma ação de indenização será capaz de restabelecer não só a honra da candidata, mas o processo eleitoral que pode restar irremediavelmente viciado. Tais riscos, certamente, estão acima dos interesses individuais da Folha.

Não cabe a cautelar no STF

Do ponto de vista processual, a cautelar apresentada pela Folha não é cabível. E quem afirma isto é o próprio Supremo Tribunal Federal, em inúmeros julgados anteriores, que culminaram na edição das súmulas 634 e 635, as quais, expressamente, determinam, sucessivamente: ‘Não compete ao Supremo Tribunal Federal conceder medida cautelar para dar efeito suspensivo a recurso extraordinário que ainda não foi objeto de juízo de admissibilidade na origem’ e ‘Cabe ao Presidente do Tribunal de origem decidir o pedido de medida cautelar em recurso extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade’.

Ademais, o próprio recurso extraordinário apresentado pela Folha é completamente vazio de fundamento, eis que se opõe a pedido de vistas, regimentalmente previsto no STM. O mérito do mandado de segurança da Folha ainda não foi decidido. Haverá supressão de um grau de jurisdição se a cautelar pretendida pela Folha for concedida.

Qualquer medida cautelar necessita, para sua concessão, além de fumaça de um bom direito (e aqui não há nenhuma) do denominado perigo na demora. O caso em exame traz um pedido da Folha para ter acesso a fatos ocorridos quarenta anos atrás, aos quais – repetimos – ela já teve acesso; quer agora usar esta Corte para legitimar o que já possui! Pior, são fatos, do ponto de vista do Estado Democrático de Direito, não mais relevantes, visto que a eventual condenação foi objeto de anistia.

Conclusão

Entre fraudar o processo eleitoral e expor desnecessariamente a cidadã Dilma Rousseff ou ‘dar um novo xerox’ à Folha , que almeja um endosso desta Corte para seus objetivos escusos, não se podem ter dúvidas: preserva-se o processo democrático e a pessoa humana.

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Advogado, doutorando em Direito na PUC-SP