A educação de qualidade –e só ela – vai conseguir sustentar o desenvolvimento do Brasil ao longo do tempo. Se tomarmos a premissa como verdadeira, descobriremos o quão graves são as informações divulgadas pela imprensa neste 26 de agosto: metade das crianças brasileiras que concluíram o 3º ano (antiga segunda série) em escolas públicas e privadas nas capitais brasileiras não aprendeu os conteúdos esperados para esse nível de ensino, ou seja, estão a caminho de serem transformadas em “analfabetos funcionais”, segundo resultados da prova ABC (Avaliação Brasileira do Final do Ciclo de Alfabetização).
Mais grave que isso: a mídia dedicou ao assunto uma cobertura de rotina, pontual, burocrática, como se não entendesse a importância do assunto que divulgou. Está mais do que na hora de a mídia incentivar o debate, iluminar o assunto em toda a sua profundidade, para assim talvez produzir uma espécie de mutirão nacional pela qualidade do ensino fundamental, tal como aconteceu na iniciativa dos empresários com o seu “Todos pela Educação”. A baixa qualidade da educação deveria ser a nossa prioridade número um. É a grande emergência brasileira.
Minha sugestão é que editores e repórteres brasileiros fizessem uma visita a Buenos Aires na condição de meros turistas. Chegariam à conclusão, em poucos dias, que, se nada for feito para melhorar a qualidade do ensino brasileiro, seremos novamente a Argentina amanhã.
A deletéria reforma do ensino
O país de Cristina Kirchner, pelo que se vê através de sua maior cidade (4 milhões de habitantes num conglomerado metropolitano que beira os 12 milhões), está sem forças para vencer a crise que o assola há tantos anos e que o faz depender cada vez mais de seu único sustentáculo: o agronegócio. Em recente entrevista ao La Nación, o Nobel de economia Joseph Eugene Stiglitz, admirado pelos kirchenistas, apontou as causas dessas dificuldades: “O turismo cresce, há algum crescimento do setor tecnológico, mas não há suficiente diversificação da economia possivelmente porque a qualidade do sistema educativo em seu conjunto não é tão boa.”
Na frente do famoso La Biela, bar e restaurante do bairro La Recoleta, a professora aposentada Nádia Bernaz, com 76 anos, fala alto, para quem quiser ouvir: “O governo destruiu o ensino argentino por razões políticas. Eu era reitora de um grande colégio público de Buenos Aires quando vieram as mudanças, pensadas para que as escolas deixassem de produzir cérebros tão críticos em relação às mazelas da política.”
Bem informado sobre as questões da política Argentina, o jornalista Ricardo Sarmiento não apenas confirma o que diz a professora Nádia Albernaz como mostra que houve conivência da mídia argentina com a deletéria reforma do ensino introduzida pelo governo de Raul Alfonsín (1983/1989): “Como foi o primeiro governo democrático depois do regime militar, a mídia foi complacente com ele, de medo que houvesse retrocesso e os militares retornassem ao poder.”
Comércio popular
Os militares, que haviam abatido com suprema violência quase uma geração inteira de professores, cientistas, pesquisadores e intelectuais, não retornaram, mas os civis nada fizeram para recuperar o antigo modelo educacional do país, que já foi considerado o melhor da América Latina. Em seu primeiro mandato, Cristina Kirchner elevou os investimentos em educação dos tradicionais 1,5 a 2% do PIB para 6%, mas economistas e empresários ponderam que o acréscimo ainda não é suficiente para corrigir os erros do passado. Os sinais das dificuldades que a Argentina enfrenta para safar-se da crise estão por toda a parte de uma Buenos Aires hoje envelhecida (a professora Nádia Bernaz diz que a média da população aproxima-se de 45 anos de idade), onde se enxergam poucos jovens e quase nenhuma criança. “Não há como ter filhos neste país, pois será muito difícil sustentá-los”, diz Nádia Bernaz, que se queixa de que seus netos – todos eles, num total de seis – estudam mandarim e pretendem emigrar em busca de trabalho ou de melhor formação profissional.
Uma profusão de placas de “vende-se” ou “aluga-se” enfeita quase todos os prédios residenciais de bairros como San Telmo, Palermo, Retiro, Mataderos. Há edifícios que têm de duas ou três placas em cada andar.
Os turistas – brasileiros, em maior número – chegam aos milhares nos dois aeroportos, mas a cidade mostra-se desajeitada no modo de tratá-los e às vezes demonstra não ter interesse neles. Nos roteiros de compras – o que reflete a paralisia da indústria, incapaz de se diversificar – as mercadorias à venda se repetem à exaustão – artigos de couro, uma moda que dá sinais de cansaço, vinhos, queijos. E é só. A impressão que dá é que todo o comércio de Buenos Aires está em liquidação. Muitas lojas, contudo, apenas simulam um rebaixamento de preços, algo ilusório para o turista brasileiro, que só raramente consegue tirar proveito do valor de sua moeda, trocada a pesos (câmbio de agosto) à base de 2,5 por um.
As ruas da pequena Tigre – espécie de estância turística da região metropolitana onde as atrações são um cassino e uma feira de artesanato – ficam coalhadas de lixo nos fins de semana e feriados prolongados. Pergunto a um comerciante do lugar se não seria o caso de a comunidade mobilizar-se para limpar a cidade, mas a resposta demonstra uma atitude que parece comum em toda a região metropolitana: “A limpeza é obrigação da prefeitura, mas eles, os políticos, só sabem roubar o nosso dinheiro.” Os garis não dão conta de limpar tanto lixo jogado nas calçadas e nas ruas. E há recepcionistas de hotéis que recomendam aos hóspedes atirar tocos de cigarro e embalagens de plástico diretamente nas calçadas.
O glamour da Calle Florida parece viver seu estertor: com as “liquidações”, a rua tem sido invadida por turistas brasileiros, paraguaios, peruanos e chilenos, que a transformaram numa espécie de 25 de Março, rua de comércio popular de São Paulo. Os “puxadores” do comércio quase arrastam os transeuntes para dentro das lojas, onde há muita pechincha e pouquíssimas vendas.
População contaminada pela desesperança
Ônibus e trens carregam indícios da severidade da crise: levam placas que informam sobre os subsídios do governo ao transporte coletivo ou de protestos contra a entrada no setor de outras empresas concorrentes. Os trens suburbanos estão quase sucateados. As margens dos trilhos foram transformadas em depósito de lixo e algumas estações viraram abrigos para os indigentes que se multiplicam por toda a cidade. O melhor da viagem é, sem dúvida, a gastronomia, cujos restaurantes preservaram a qualidade de lomitos e bifes de chorizo a preços muito favoráveis aos visitantes brasileiros.
O mais eloquente sintoma da crise é sutil e só vai ser percebido pelas pessoas que estiveram em Buenos Aires 15 ou 20 anos atrás, num momento em que a economia do país vivia momentos bem mais favoráveis: trata-se da ausência, nas belas e extensas praças da cidade, dos paseadores de perros, jovens de ambos os sexos que levavam para passear os cães das famílias abastadas. Cobravam diária de até US$ 100 por animal e conduziam de 10 a 12 cães cada um. Esses personagens estão desaparecidos. Se continuam a existir, levam no máximo dois animais cada um. O que mais se vê em Buenos Aires são hoje homens e mulheres, geralmente de idade avançada, a levar seus cãezinhos para passeio. Na diária paga aos paseadores estava incluída a obrigação de recolher a sujeira que os cães produzem pelos longos passeios. O fim dos paseadores deve explicar a imundície que hoje toma conta do calçamento de ruas e praças dos bairros mais sofisticados de Buenos Aires.
O mais dramático é que a campanha eleitoral (a Argentina elegerá seu novo presidente em outubro e, ao que tudo indica, Cristina Kirchner será reeleita) está longe de empolgar a população da capital do país, contaminada pela desesperança. Pergunto a Nádia Bernaz em quem votará em outubro e sua resposta parece sintetizar o ânimo da maioria portenha: En cualquier uno, menos a Cristina.
Os jornais se preocupam menos com a campanha política e mais com as possíveis consequências para o país da crise internacional. Se continuar a investir em educação em seu provável segundo mandato, é possível que Cristina Kirchner resgate a qualidade do ensino público e assim deixe o país mais preparado para enfrentar os embates do futuro. Até agora, sua maior conquista foi estancar a evasão do ensino fundamental, um problema que no Brasil ainda é bastante grave. O problema que se coloca no momento é se haverá tempo de a Argentina colher os frutos da semeadura realizada com muito atraso.
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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil]