“As revoluções árabes nunca são previsíveis” (Mokhtar Ben Barka, professor de Ciência Política na França)
A chamada “primavera árabe” pode não haver produzido, pelo menos ainda, os frutos democráticos ardentemente almejados pelo inconformismo das ruas. Mas já rendeu benefícios compensadores ao definir a retirada de cena de notórios, longevos e abomináveis tiranos. Manda a verdade dizer que muitos outros déspotas da conturbada região, apelando para brutais métodos de repressão, permanecem inabaláveis, aparentemente inatingíveis, nos postos de comando das nações árabes que tanto oprimem.
Não é fora de propósito inferir-se que, nalguns casos, eles são escandalosamente favorecidos pelas aprontações estratégicas das grandes potências ocidentais. Potências estas fervorosamente empenhadas em disseminar naqueles vulneráveis pagos as diretrizes de uma “doutrina diplomática” apelidada por sociólogo europeu de “força civilizadora da hipocrisia”. As ações derivadas desse gênero de “diplomacia” contam com os eficientes préstimos de uma mídia subserviente para blindar regimes tão nefastos quanto os que já sucumbiram na onda da revolta popular.
Reside aí a razão primordial pela qual, para ficar num único e ilustrativo exemplo, a opinião pública mundial deixar de ser informada adequadamente dos delitos constantemente cometidos contra os direitos humanos pela monarquia feudal da Arábia Saudita. A ferocidade institucionalizada que prevalece naquele reino, dominado por retrógrado sistema político e religioso, é competentemente camuflada.
Vorazes apetites pelo poder
A desinformação generalizada lavra no espírito da grande maioria a errônea sensação de que o citado país seja um aliado altamente confiável das potências ocidentais no combate ao extremismo incendiário islamita. Não é bem assim. A confiabilidade alegada suscita controvérsias. O integrismo religioso saudita é tido por quem entende do assunto como a raiz ideológica do fanatismo de que se acha inoculada a sinistra Al Qaida. O jornalista estadunidense Michael Moore sustenta que as articulações do atentado às torres gêmeas em 2001 foram feitas a partir da Arábia Saudita e que delas se envolveram, como cúmplices de Bin Laden (ele próprio, um príncipe saudita), outros elementos da realeza, além de influentes líderes religiosos. Isso explicaria ainda, de acordo com o jornalista, o fato da tragédia que enlutou os Estados Unidos e comoveu o mundo ter sido festejada – este o termo – como uma proeza histórica em templos de Riad, assim que a notícia se espalhou. Ressalte-se, também, o fato de que boa parte do “comando suicida” responsável pelo sequestro dos aviões era de nacionalidade saudita – provavelmente, como deduzido em muitas avaliações dos fatos, elementos com passagem pelos quadros da força aérea do país.
O desdobramento, sob certos aspectos confuso, dos movimentos libertários árabes desalojou do poder alguns ditadores, mas não assegurou ainda condições de visibilidade suficientemente clara sobre o que pode vir por aí. Há temores de que venha a ser feita, aqui e ali, alguma mudança para não se fazer mudança alguma; de que possa, num e noutro caso, ocorrer uma simples substituição da guarda, sem banimento dos processos autoritários. As hipóteses que fervilham acerca dos rumos das coisas são alimentadas pelo, já agora, reduzido volume de informações provenientes de países como o Egito, Tunísia e Iêmen, os primeiros a serem alcançados pela onda mudancista, ou pelo minguado noticiário atual referente ao que vem realmente rolando nalguns lugares, depois dos primeiros e contundentes impactos rebeldes. Não se pode deixar à margem a constatação de que a coalizão de forças constituída para destronar os déspotas não passa de um tremendo saco de gatos, abarcando lideranças de todos os matizes e tendências imagináveis. Ou inimagináveis. Isso gera, naturalmente, incógnitas quanto a quem possa estar mais próximo de empalmar o poder.
O desejo dos democratas no mundo inteiro é de que a evolução dos acontecimentos se processe no rumo do desenvolvimento social e das liberdades públicas em plenitude. Almejam também que a reação contra as ditaduras se propague no mundo árabe. E que as grandes potências se abstenham de intervenções ostensivas ou de bastidores que amparem, como já aconteceu tantas vezes, os vorazes apetites pelo poder de falsos líderes com inclinação dócil aos seus caprichos e ambições.
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[Cesar Vanucci é jornalista, Belo Horizonte, MG]