Falar e ser ouvido, explicar e ser compreendido. A atomização dos debates na internet parece uma prova da ânsia de participação popular na discussão, a tal ‘opinião pública’ reclama voz. No que tange à comunicação social, entretanto, o Brasil não conseguiu ultrapassar a fase das liberdades políticas clássicas – e negativas, de estrita garantia formal de direitos. Essa tem sido a nota dissonante em um duelo desigual, marcado pela ‘ironia da liberdade de expressão’ (Owen Fiss): a liberdade real de expressão de uns poucos apenas. Fala de censura o próprio censurador: todos os contrários à regulação da mídia não admitem nem mesmo ‘conversar’ sobre o tema. O tom intimidador aparece, o tema é silenciado.
Ocorre que a própria Constituição apontou para a proteção de vários bens jurídicos diferentes, não havendo um único direito absoluto. Assim, para evitar a todo o custo a controvérsia e a implantação de qualquer marco regulatório da mídia, mudemos a Constituição – ou, antes, mudemos de Constituição. Essa não servirá para evitar o que já é praticado em nível mundial: a inclusão da mídia na pauta da responsabilidade social.
Entretanto, há vários pontos de discussão, em se tratando de regulamentação da mídia a partir da Constituição. Um desses pontos é a possibilidade de regulamentação em consonância com a vontade ou permissão constitucional, delineando-se o bem jurídico ou direito em nível infraconstitucional ou em emenda (compatibilidade material com a Constituição); outro ponto seria a possibilidade técnica a partir da competência legislativa (permissão da Constituição para ente federativo legislar sobre determinado assunto, compatibilidade formal com a Constituição em se tratando de processo legislativo).
Poder derivado
A Constituição Federal, como norma máxima no ordenamento brasileiro, precisa de instrumentos para conservar sua força normativa. O controle de constitucionalidade é um desses instrumentos, e consiste em controlar a compatibilidade de atos normativos com a Constituição, seja no âmbito da compatibilidade material, que toca ao conteúdo; seja no aspecto formal, referente à competência para produzir o ato e a própria produção.
Exemplo da discussão foi o decreto presidencial sobre Direitos Humanos, para muitos, inconstitucional, por tratar de matérias próprias do Poder Legislativo. Sobre a questão, temos que algumas matérias jurídicas, por envolverem diferentes aspectos, podem ser especialmente complexas. Uma dessas matérias é a relativa à comunicação social, que oferece muitos desdobramentos. A Constituição Federal trata da comunicação de forma concentrada no artigo 220, e de forma dispersa, por todo o texto. No artigo 22, inciso XXIX, dispõe-se que é competência privativa da União legislar sobre propaganda comercial.
A Lei 8.608/2004, do Rio Grande do Norte (D.O.E. nº 10.893, 30/12/2004), entretanto, em clara exorbitância de seu limite competencial, dispõe sobre proibição de propaganda atentatória à moral em outdoor. O ato em questão proíbe cenas de nudez e mensagens eróticas ou pornográficas que atentem contra a moral e os bons costumes em outdoors (art. 1º).
Em nível estadual, o controle de constitucionalidade parece periférico, uma vez que o debate pode permanecer isolado ou mesmo desconhecido. As leis estaduais são resultado do poder derivado decorrente (artigo 25 CF, art. 11 ADCT) e, mesmo sujeitas ao exame de compatibilidade com a Constituição Federal, podem ser desconhecidas em termos nacionais e até pela população do Estado-membro.
Os direitos a prestações
Ao tempo em que se mostra inconstitucional por vício formal de competência, a Lei 8.608/2004 chama a atenção para o vácuo na regulamentação na área de comunicação. O Congresso brasileiro, sob o lobby dos empresários da comunicação, tem se mostrado ineficiente em legislar acerca do tema, como, de resto, em tantas outras áreas problemáticas. Segue-se a linha estrita do liberalismo e da não-intervenção estatal, fortalecendo continuamente os já fortes no debate público e no mercado informacional.
Todavia, resta claro que lei estadual tratando de comunicação tem forte chance de ser declarada inconstitucional, por ser o tema ‘comunicação social’ amplo, abarcando matérias de direito civil, penal, trabalhista, telecomunicações e radiodifusão, matérias essas de competência legislativa privativa da União (Constituição Federal, art. 22).
Uma importante garantia para o direito de comunicação social, envolvendo já um cunho procedimental, seria a constituição de órgãos responsáveis pela fiscalização de pautas especialmente relevantes para o debate público: políticas de concessão de rádio e televisão, direito de resposta, responsabilidade social da mídia enquanto instituição democrática, direito à informação, padrões de qualidade, graves violações de direitos humanos pelos meios de comunicação.
A temática perpassa a dimensão da liberdade enquanto direito a algo, no sentido de direito a ações estatais positivas (prestações que podem ser fáticas ou normativas: exigência de organização e procedimento, impondo uma comissão ao legislador). Segundo Alexy, ‘os direitos a prestações (em sentido amplo) podem ser divididas em três grupos: (1) direito à proteção; (2) direitos a organização e procedimento; (3) direitos a prestações em sentido estrito’ (Robert ALEXY, Teoria dos direitos fundamentais, p. 444).
A liberdade de comunicação social
A possibilidade de criação de um conselho atenderia ao direito de comunicação em sua esfera positiva, no tocante a se exigir do Estado a constituição de tal órgão (direitos a organização e procedimento). Alguns países ocidentais representativos possuem esses entes, sejam conselhos, agências ou autoridades administrativas.
Portugal menciona detalhadamente tal órgão na Constituição, como entidade administrativa independente (foi designado anteriormente de Alta Autoridade para a Comunicação Social, Constituição da República Portuguesa, art. 39). A entidade reguladora é independente funcional, financeira e politicamente, tendo competência sobre todos os órgãos de comunicação, públicos e privados, e função de fiscalização, controle e ‘emanação de princípios e regras de regulação’.
Nos Estados Unidos, existe a Federal Communication Commission (FCC), uma agência governamental independente criada em 1934, responsável por regular as comunicações por rádio, televisão, cabo, satélite e cabo. Na França, tem-se o Conselho Superior de Audiovisual, incumbido de fiscalizar a atividade da radiodifusão; na Inglaterra, organizou-se o Indipendent Television Commission, responsável pelas concessões e qualidade da programação; na Holanda, estruturou-se a Comissão para os media, um modelo de autoridade administrativa; a Espanha tem algumas experiências regionalizadas nas comunidades históricas, como o Conselho de Audiovisual da Catalunha.
O Brasil, entretanto, está bastante atrasado no que diz respeito a atentar para a liberdade de comunicação social. A Constituição remeteu para um conselho (CF, art. 224), que foi transformado em simples órgão de consulta do Congresso; e a atuação da Anatel e do Ministério das Comunicações tem se mostrado opaca. O problema da legiferação cresce com o ativismo judicial e o vácuo normativo em áreas de relevância estratégica para o cidadão. Afinal, a Constituição, para não ser retórica, precisa ser processualizada por instrumentos também como a lei. Entendida, claro, como lei constitucional.
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Jornalista e professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN