Rua Major Quedinho, esquina com a Martins Fontes, de frente para a Avenida São Luís – ali ficava a redação do Estado de S.Paulo, onde comecei no jornalismo e passei por um curso intensivo de politização. O jornal era e ainda é de direita, mas meus amigos, na maioria, eram de esquerda e vivíamos o começo da ditadura militar.
A redação era uma imensa sala que ocupava quase todo o andar, mesas de ferro com cobertura de borracha verde escuro e sobre elas as enormes máquinas de escrever. Uns dez metros, logo depois da entrada, a mesa do redator-chefe. Quando fiz o estágio de um mês que mudaria minha vida, era Cláudio Abramo; ao assumir como repórter tinha havido uma mudança, era Nilo Scalzo.
À direita do redator-chefe, o noticiário local com o magérrimo Cleonte de Oliveira, dedos amarelados de tanto fumar, bigode bem tratado, com quem aprendi o bê-a-bá da profissão. Um pouco adiante de Nilo, à esquerda, o editor-político Flávio Galvão; à direita, Eduardo Martins, voz alta e sonora que ainda me chega aos ouvidos, apesar da metralhadora das teclas compondo nas laudas as notícias que seriam o jornal do dia seguinte. Rubem Biáfora, Sábato Magaldi, críticos de cinema e de teatro; o franzino Vladimir Herzog, com seu sorriso irônico. Lá no fundo, o editor das notícias internacionais, Lenildo Tabosa com seus jovens pupilos, que cometiam erros e tinham fama de extrema-direita.
Um elepê de Georges Brassens
Ao meu lado, sentava às 19h, o plantonista da Câmara, rosto fino e magro, que parece estar aqui agora comigo, mas cujo nome não me vem. Num canto à esquerda, um tanto solitário e secreto, Delacir Mazzini. Grandes papos quando, com matérias feitas e copidescadas, esperávamos o fechamento do jornal. Sua distração era a de memorizar vocabulário de inglês, que ia escrevendo e traduzindo.
De vez em quando, se abria a porta do aquário e surgia o Mesquitão, o Filho, figura imponente, no velho estilo de paulistanos de uma época já extinta. Tinha acabado de fixar a linha política do jornal, cuja redação ficava a cargo do português Miguel Urbano Rodrigues, famoso por ter participado de um dos primeiros sequestros, senão o primeiro no mundo, o do navio Santa Maria. Exilado português, comunista, erudito, que eu transformaria no meu professor e guru.
Comunistas e esquerdistas católicos não faltavam naquela redação. Entre eles, um outro amigo, Ivam de Barros Bella, redator encarregado de resumir o noticiário nacional das agências e correspondentes. Ficamos logo amigos e, numa visita que lhe fizemos, eu e minha primeira esposa, descobri Georges Brassens num elepê que reencontraria logo no começo de meu exílio em Paris.
A foto do Encontro com a Liberdade
Mas naquela época, ninguém pensava que a ditadura de Castelo Branco fosse nos atingir. Ivam tinha o olhar matreiro, quase maldoso, conjugado com um sorriso quase risada e um rosto que enrubescia. Iríamos viver juntos uma bela aventura.
O governo do ditador Castelo Branco decidira criar a censura para a imprensa, da qual o próprio Estadão logo depois seria vítima. Seria possível fazer alguma coisa? Aparentemente não, mas em vez de cruzarmos os braços, combinamos o seguinte: haveria uma assembleia-geral do Sindicato dos Jornalistas, presidido naquela época por Adriano Campagnole. Poderíamos reagir, telefonando para alguns colegas de outros jornais comparecerem e assim termos maioria para um protesto contra a censura.
Dito e feito. Campagnole não conseguiu dominar a assembleia, criamos ali a Comissão pela Liberdade da Imprensa, com Ivam como presidente, e requisitamos a sede do Sindicato, seus telefones e mimeógrafo para a convocação de uma mobilização da população pela liberdade de imprensa. Seria o Encontro com a Liberdade, realizado em janeiro de 1967, no Teatro Paramount, abarrotado, na avenida Brigadeiro Luiz Antonio. A última manifestação pública permitida pela ditadura, da qual participaram os líderes da oposição à ditadura ainda não presos e não exilados, desde comunistas aos católicos de AP do Brasil Urgente.
Entusiasmados com essa mobilização, nos reunimos – Ivam, Narciso Khalili, David de Moraes, Audálio Dantas e outros – na Chapa Verde para tomar a direção do Sindicato dos Jornalistas. Foi uma campanha ousada, em plena ditadura que ia começando a apertar. Perdemos feio, por 200 votos, e isso iria nos custar nossos empregos. Com o exílio, nunca mais revi Ivam de Barros Bella, mas sempre perguntava por ele aos companheiros que passavam pela França.
Outro dia, publiquei alguma coisa e citei seu nome e, nesta semana recebi um e-mail de sua filha. Ivam teve duas filhas, eu não sabia. E ela me contou de seu pai, do combatente que foi contra a ditadura, das dificuldades que passou por isso, dos empregos que perdeu. E me escaneou uma foto do Encontro com a Liberdade, na qual estou no meio da mesa, secretariando o encontro presidido por Mário Martins. Foi assim meu reencontro com Ivam de Barros Bella e é com emoção que lhes escrevo. Mariana, sua filha, me contatou porque leu meu artigo e queria me contar que seu pai, o meu amigo da Major Quedinho, morrera há pouco.
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Jornalista e escritor, correspondente em Genebra, líder emigrante. Autor de Dinheiro Sujo da Corrupção, Geração Editorial. Colabora com a agência Assaz Atroz