Há lugar para alarmismo quando uma questão envolve ameaças às liberdades civis. É preferível uma preocupação exagerada com nossas liberdades do que uma demasiado pequena, em especial diante de um governo envolvido em segredos de guerra desde os ataques de 11 de Setembro. Mas, passada uma década, também há lugar para uma reflexão sóbria. Em termos históricos, a resposta legal ao 11/9 deu lugar a tremores, mas não terremotos, no que se refere às liberdades civis. E mesmo essas mudanças resultaram, em grande parte, de um reordenamento de prioridades na aplicação da lei, e não de alterações fundamentais na própria lei.
Vejamos o caso do USA Patriot Act, um texto relativamente curto, se comparado à sonora explicação de seu significado: “Unir e fortalecer os Estados Unidos da América fornecendo as ferramentas necessárias para interceptar e obstruir a ação terrorista de 2011”. A lei, com mais de 300 páginas, singrou pelo Congresso sete semanas após os ataques com escassa discordância. Rapidamente, tornou-se uma espécie de atalho para o abuso e extrapolação por parte do governo.
É inegável que o Patriot Act ampliou os poderes de vigilância do governo e o escopo de algumas leis penais. Porém, na verdade, isto significava bulir com as margens do problema e praticamente nada, se comparado às respostas de outras democracias desenvolvidas em que a detenção preventiva e as restrições ao discurso subversivo se tornaram lugar comum. “Numa perspectiva comparativa, o Patriot Act parece banal e suave”, escreve Kent Roach, professor de Direito na Universidade de Tronto, em seu novo livro The 9/11 Effect: Comparative Counter-Terrorism.
Cultura de suspeição e armadilhas
A história é diferente se a abordagem for além da legislação penal doméstica. Detenções na Baía de Guantánamo, perseguições incomuns e interrogatórios brutais examinaram os limites do exercício de poder adequado pelo governo em tempo de guerra. O governo norte-americano manteve pessoas presas sem acusação por quase uma década, envolveu-se em tortura – tal como o termo é definido no Direito internacional – e mandou pessoas para serem interrogadas no exterior, em países conhecidos por adotarem práticas do que todo mundo concorda em chamar tortura. Mas a legislação penal propriamente dita mudou surpreendentemente pouco logo após os ataques. O que mudou foi a maneira pela qual a aplicação da lei concebeu sua missão.
Quase imediatamente após os ataques, o procurador-geral [correspondente a ministro da Justiça] John D. Ashcroft anunciou “um novo paradigma”. Disse que a prevenção de ações terroristas passar a ser mais importante que a punição dos crimes depois de realizados. Percebiam-se aqui ecos de Minority Report, um conto de Philip K. Dick de 1956, que depois se tornou filme em 2002, que descrevia um mundo no qual a polícia prende os criminosos antes que eles possam agir, baseando-se em seus pensamentos, ao invés de suas ações.
O novo paradigma incentivou a detenção de pessoas consideradas perigosas – tal como apresentadas por Ashcroft – por “cuspir na calçada”, ou por desrespeito para com autoridades da imigração, ou como testemunhas relevantes. Aumentou a vigilância sobre grupos religiosos e dissidentes. Desencavou o uso de uma lei impedindo qualquer tipo de apoio, mesmo que inofensivo, a organizações supostamente envolvidas com terrorismo, pressionando atividades que desde há muito se julgavam protegidas pela Primeira Emenda. E infiltrou informantes nas comunidades muçulmanas, gerando uma cultura de suspeição e de acusações de armadilhas.
Prender primeiro, acusar depois
Num quadro ampliado da questão, o número de pessoas diretamente afetadas por essas mudanças foi pequeno. O alarmante efeito indireto sobre a liberdade de expressão, os direitos de associação e a liberdade religiosa foi impossível de avaliar. Mas se comparada às Leis de Estrangeiros e de Sedição, de 1798, aos ataques de Palmer, de 1920, ao confinamento de nipo-americanos durante a II Guerra Mundial e à era de Joseph McCarthy, a restrição de liberdades civis na última década foi menor.
Como normalmente fizeram no passado, os tribunais consentiram os esforços do governo para combater o terrorismo. É verdade que a Suprema Corte fixou alguns limites à possibilidade de o executivo manter prisioneiros na Baía de Guantánamo. Mas as decisões de casos penais e de imigração diferem dessa interpretação.
“Os tribunais vêm errando e muito”, disse Susan N. Herman, presidente do Sindicato de Liberdades Civis norte-americano e autora do livro Taking Liberties: The War on Terror and the Erosion of American Democracy, a ser publicado em outubro. A Corte Suprema, segundo ela, normalmente recusa-se a ouvir casos em que tribunais de instâncias inferiores mantêm a posição do governo em questões envolvendo a segurança nacional. “Eles não estão interessados em desafios às liberdades civis”, diz ela dos desembargadores. “Só se interessam quando o governo perde.”
A meta de deter o terrorismo antes que a ação aconteça levou autoridades responsáveis pela aplicação da lei a fazer detenções prévias e, em seguida, confiar em acusações que exigiam pouca evidência de uma conduta concreta. Muitas vezes, promotores denunciaram réus acusados de envolvimento com o terrorismo por conspiração ou “apoio relevante” a grupos supostamente envolvidos com terrorismo. Essas leis já existiam, diz Robert M. Chesney, professor de Direito na Universidade do Texas. “A diferença”, diz ele, “é que não eram usadas.”
Dois princípios
Após os ataques do 11 de Setembro, as coisas mudaram. Apenas nos primeiros cinco anos que se seguiram, promotores denunciaram mais de 100 pessoas por fornecerem apoio relevante a grupos terroristas. Esse apoio muitas vezes era de forma tangível, como o fornecimento de armas, e em geral parecia vinculado ao progresso de objetivos violentos.
Mas algumas das acusações baseavam-se no envio de dinheiro para grupos envolvidos tanto em trabalho humanitário quanto em violência. E no ano passado, no Projeto de Lei Holder vs. Humanitários, a Corte Suprema deliberou que também poderia ser um delito grave o incentivo a grupos terroristas de usar meios pacíficos para resolver conflitos. Esse discurso, disse o tribunal, correspondia a apoio relevante e poderia ser considerado criminoso apesar da proteção da Primeira Emenda.
John G. Roberts, presidente da Corte, destacou que a lei de apoio relevante só era pertinente aos discursos dirigidos ou coordenados por grupos terroristas. As pessoas “podem dizer o que bem entendem sobre qualquer assunto” sem desrespeitar a lei, disse o presidente da Corte, desde que o façam de maneira independente.
Para os críticos, trata-se de uso agressivo da lei de apoio relevante e similares, dividido em dois princípios que se acreditavam resolvidos há cerca de meio século. Um deles é que o simples vínculo com uma organização subversiva não pode ser considerado um crime. O outro é que a defesa abstrata da deposição do governo, inclusive por meio da violência, deve ser tolerada de acordo com a Primeira Emenda.
Culpado até que se prove a inocência
A decisão sobre o Projeto de Lei Humanitário “tem afinidade com a criminalização do discurso e da culpa por associação da era McCarthy”, disse David D. Cole, professor de Direito em Georgetown, que representou os contestadores no caso do Projeto de Lei Humanitário como advogado do Centro de Direitos Constitucionais.
Ainda segundo os críticos, uma segunda lei que está nos livros e que permite a detenção de testemunhas relevantes – pessoas que se acredita terem provas de crimes praticados por outras – foi usada de modo errado, como uma espécie de regime de detenção preventiva. Segundo estes críticos, ao invés de usar a lei para garantir que pessoas que tenham informação sobre a prática de atos ilícitos de outras se apresentem para depor, os promotores usaram a lei para deter essas próprias pessoas sob a suspeita de vínculos com o terrorismo.
Leis referentes a transgressões de imigração também foram usadas para deter pessoas suspeitas de terrorismo, segundo um relatório de 2003 do inspetor-geral do Departamento de Justiça. O relatório dizia que as pressuposições mais comuns do sistema legal foram viradas pelo avesso após os ataques. Pessoas detidas sob a acusação de imigração ilegal eram consideradas culpadas até que se provasse sua inocência e muitas vezes ficavam detidas por meses, em condições duras, após terem recebido ordem de soltura.
Em decisões de 2009 e de maio deste ano, a Corte Suprema bloqueou duas ações que procuravam tornar John Ashcroft responsável pelo que os querelantes qualificaram como abusos nas leis de testemunha relevante e de imigração. “Nada há de surpreendente”, escreveu o desembargador Anthony M. Kennedy num relatório aprovado por uma maioria de cinco juízes, “que uma política legítima, orientando a aplicação da lei para prender e deter indivíduos por seu suposto vínculo com os ataques, possa eventualmente produzir um impacto discordante em muçulmanos árabes, embora o objetivo dessa política não fosse dirigido a árabes ou muçulmanos.”
Na década que se seguiu aos ataques, o governo também se tornou particularmente mais agressivo quanto ao uso de informantes e operações-relâmpago, disseminando falta de confiança em partes das comunidades muçulmanas. Numa dessas operações, um imã da cidade de Albany foi apanhado numa armadilha, num complô fictício que envolvia o lançamento de mísseis e o assassinato de um diplomata paquistanês em Nova York.
Defendendo a sentença de 15 anos imposta ao imã Yassin M. Aref, os promotores disseram que o novo paradigma de prevenção justificava as táticas. “O FBI [Federal Bureau of Investigation] tem a obrigação de utilizar todas as ferramentas a seu dispor”, escreveram os promotores num memorando de 2007 para um tribunal de recursos, “inclusive uma operação-relâmpago para remover das ruas indivíduos prontos e dispostos a ajudar terroristas.”
Proteção “seriamente diluída”
Nem todas as táticas no combate ao terrorismo nos Estados Unidos se basearam em leis vigentes. “Na vigilância eletrônica, ocorreu uma grande mudança”, disse John C. Yoo, professor de Direito em Berkeley, Universidade da Califórnia, que se tornou conhecido por suas agressivas recomendações e visão expansiva do poder executivo como autoridade no Departamento de Justiça no governo Bush. Em 2002, por exemplo, um tribunal especial de recursos, o United States Foreign Intelligence Surveillance Court of Review, concedeu ao Departamento de Justiça novos poderes, mais amplos, para usar escutas clandestinas nas operações de inteligência em casos de crime. “Isso revoluciona nossa capacidade para investigar terroristas e julgar ações terroristas”, disse, na época, John Ashcroft.
Após revelações sobre escutas de comunicações internacionais não autorizadas, o Congresso aprovou o programa por ampla maioria. Essas mudanças legais, acompanhadas por fantásticos avanços em tecnologia, permitiram ao governo uma ampla capacidade de coletar informação. “A Quarta Emenda [à Constituição] foi seriamente diluída”, diz a professora Susan Herman, da Faculdade de Direito de Brooklyn. Acrescentou que ficou estupefata com “a quantidade de vigilância que foi desencadeada com cada vez menos apreciação judicial e cada vez menos suspeitas individualizadas”.
Abuso contra inocentes
Tanto o governo de Bush quanto o de Obama foram criticados por liberais por empregarem exageradamente o sigilo e, em particular, por invocarem o privilégio de segredos de Estado para impedir ações civis questionando coisas como uma interpretação ampla da Constituição permitindo uma influência judicial legítima, de acordo com a época [rendition] e os programas de vigilância. Entretanto, por padrões internacionais, o público aprendeu bastante sobre atividades secretas do governo. “O fato de os abusos cometidos pelo executivo após o 11 de Setembro terem vindo à luz é outra prova do excepcionalismo norte-americano”, escreveu o professor Kent Roach, “tal como expresso nas atividades de uma imprensa livre que não sofre restrições por atos oficiais secretos, o que se pode encontrar na maioria das outras democracias.”
Opiniões divergem sobre prejuízos colaterais que os esforços na luta contra o terrorismo nos Estados Unidos possam ter infligido sobre dissidentes políticos, a liberdade religiosa e a liberdade de reunião. “Numa avaliação histórica”, disse o professor John Yoo, “quando se vê tanta gente falando, você poderia dizer: `Não acredito que estejamos em guerra.´ As liberdades civis estão muito mais protegidas do que vimos em guerras passadas.”
O professor David Cole foi menos otimista: “A partir do 11 de Setembro, o Direito Penal se expandiu e, com armadilhas, prendeu como `terroristas´ pessoas que nada mais fizeram do que dar ajuda humanitária a famílias necessitadas, ao mesmo tempo que a privacidade e as liberdades políticas diminuíram, em especial para aqueles que vivem em comunidades muçulmanas”, disse. “Por um lado, os últimos dez anos mostraram que o Direito Penal pode ser usado com eficácia na luta contra o terrorismo; por outro lado, também demonstrou que a exigência de medidas preventivas pode levar rapidamente ao abuso contra inocentes.”
***
[Adam Liptak é jornalista do New York Times]