Comentar sobre a ditadura militar brasileira para jovens que não vivenciaram este momento é uma tarefa árdua. As gerações mais novas não têm sentimento de pertencimento com o caso, a significação de toda uma época ainda teima em ficar do lado das gerações passadas.
Com o intuito de estabelecer relações e conseqüências entre diferentes períodos, os alunos de Radiojornalismo do Curso de Jornalismo da PUC-SP, coordenados pelo professor Elias Novelino, entrevistaram, por telefone, o Arcebispo Emérito de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns – figura de notável no período que se seguiu à morte do jornalista Vladimir Herzog.
A entrevista foi transmitida ao vivo na sexta-feira (7/10) para os estudantes da Faculdade de Comunicação e Filosofia da universidade. Ao responder às perguntas dos alunos, D. Paulo comentou sobre sua atuação naquela circunstância dramática, as dificuldades encontradas para realização do culto ecumênico em homenagem ao jornalista, e a relevância da morte de Vladimir Herzog como marco na resistência ao regime militar no Brasil.
Interior da Catedral da Sé, em São Paulo, durante o ato ecumênico pela morte de Vladimir Herzog; 31 de outubro de 1975 (acervo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo) |
Como o senhor foi informado da prisão e da morte de Vladimir Herzog?
D. Paulo Evaristo Arns – Recebi sábado [25/10/1975] de manhã, na Cúria Metropolitana, um grupo de jornalistas que vieram me dizer que tanto eles como inúmeros companheiros de profissão estavam sendo perseguidos, presos e torturados. Aproveitaram também para me contar sobre a prisão de Vladimir Herzog. Comuniquei imediatamente as autoridades e contatei o governador Paulo Egydio [Martins], que embora no interior, me disse para contatar o secretário de Segurança Pública de São Paulo, coronel Antônio Erasmo Dias, para pedir a não tortura e a libertação do preso. Juntamente com os jornalistas, procurei Erasmo Dias o dia todo, mas não o encontramos; não conseguimos salvar a vida do jornalista. Já de noite, telefonei para Brasília, que estava conturbada; o presidente Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva não aceitavam a morte de Vladimir Herzog.
Como surgiu a idéia do ato religioso na Catedral da Sé?
D. Paulo – A primeira coisa que fiz foi ir ao velório, realizado no Hospital Albert Einstein. Lá encontrei políticos e jornalistas amigos de Herzog, que me informaram que era proibido fazer qualquer pronunciamento. Mesmo assim, me aproximei do corpo, rezei dois salmos e disse para que não enterrassem o jornalista nas bordas do cemitério, pois ele não havia se suicidado e sim sido morto pela polícia. Fora a minha visita, acompanhada por mais dois padres, também estavam presentes no hospital cinco rabinos judeus. Determinamos que a grande manifestação religiosa deveria ser realizada em um lugar bem mais amplo. Nesse caso, os rabinos me pediram a Catedral da Sé e eu imediatamente disse que a catedral estaria à disposição. Como era sábado, decidimos realizar a manifestação na segunda-feira às 15 horas, dando tempo para avisar todo mundo.
Como era o ambiente no dia do culto ecumênico? Houve tentativas de impedir a celebração?
D. Paulo – Às 14 horas, a Catedral estava lotada e às 15 horas a Praça da Sé estava tomada pelo povo. Antes de me dirigir para a catedral, recebi a visita de dois secretários de Paulo Egydio – pensei também que vieram por ordem de Geisel –, que tentaram impedir o ato ecumênico, alegando ser Vladimir Herzog um judeu suicida. Eu disse que iríamos sim realizar o ato, entre judeus e cristãos, contra a baixeza da polícia. Mandei-os avisar o presidente da República que o arcebispo de São Paulo estaria lá. Quando cheguei à Praça da Sé, fui informado da presença de mais de 500 soldados armados e com permissão para abrir fogo contra os civis, caso alguma manifestação mais exaltada fosse realizada. No final, conseguimos que o reverendo Jaime Wright representasse os protestantes, o rabino Henry Sobel representasse os judeus e eu falasse por último, em nome de toda a população.
O senhor teve apoio da comunidade católica para a realização desta missa?
D. Paulo – Nós convidamos católicos e demais pessoas. No momento em que se comete uma injustiça, não existem diferenças de religião. Todo mundo tem que acompanhar e defender a justiça, a verdade e a solidariedade.
Como o senhor vê a sociedade brasileira 30 anos depois? Nós evoluímos ou ainda temos muito a conquistar em relação aos direitos humanos?
D. Paulo – A sociedade evoluiu certamente no sentido de que todo jornalista tem o direito de publicar qualquer violação dos direitos humanos dentro do Brasil. Isso é muito importante porque quanto mais se divulga, menos acontece. Devemos deixar de lado o medo de sermos barrados e acusados, da mesma forma que fui apontado como um não-cristão, ao defender Vlado, um judeu.
Como se dava a repressão por meio da polícia contra os jornalistas? Seria possível a sociedade regredir nesse sentido?
D. Paulo – Nunca deve se esperar que aconteça coisa semelhante. O próprio comandante do 2º Exército me disse que eles trabalhavam em arrastão, ora pegando todos os jornalistas, ora pegava todo os juristas etc… Depois guardavam alguns para torturá-los e descobrir novos nomes.
A voz do jornalista Vladimir Herzog foi calada?
D. Paulo – O nome Vladimir Herzog fez-se tornou símbolo para todos os jornalistas e para o Brasil inteiro. Eu também sou jornalista há mais de 80 anos. Lembro-me que todos nós prometemos que desde a morte de Vladimir iríamos fiscalizar e publicar qualquer violação contra o exercício do jornalismo. Fizemos a proposta ‘Em nome da verdade’, um documento assinado por mais de mil jornalistas do país inteiro [leia aqui], que desmentia o inquérito da polícia a respeito da morte fraudada de Vladimir Herzog, também defendendo a livre comunicação em nosso país.
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Estudante de Jornalismo da PUC-SP