A cidade de São Paulo é triste, monótona e quase desanimada. Quando os estudantes da Faculdade de Direito vão às férias, então é que se reconhece melhor o que acabamos de dizer e tivemos ocasião de verificar… Redigido por Augusto Emílio Zaluar, em sua peregrinação pela Província de São Paulo, o texto mais se parece com um desabafo de quem passou pela capital dos paulistas e não gostou do que encontrou; ou melhor, do que não encontrou.
São Paulo de inícios dos oitocentos não deveria causar maior impressão a qualquer viajante à cata de aventura, atividade cultural ou ainda mais social. A urbe era mais conhecida pela alcunha de “cidade de terra”, tal a quantidade de poeira que cobria o transeunte, ou, quem sabe, numa homenagem irônica à cor monótona das casas, revestidas de taipa. O fato é que ela servia mais como entroncamento de tropas, parada ligeira de viagem, do que de pouso seguro ou desejado.
Pois é atrás dessa metrópole improvável que Marisa Midori Deaecto se debruçou em O Império dos Livros – Instituições e Práticas de Leitura na São Paulo Oitocentista. A autora tira água de pedra, ou pedra do barro, para descrever os poucos e tacanhos espaços de circulação e consumo de livro, ou mesmo de realização de práticas coletivas de cultura.
O ambiente na capital dos paulistas
Em primeiro lugar, ela seleciona a Biblioteca Pública de São Paulo, inaugurada ainda em 1825. Resultado da desapropriação de parte da livraria do convento dos franciscanos e da compra do espólio de um particular, dono de rara coleção privada, a biblioteca era minguada. Por conta disso, Marisa Midori tem que se esforçar para apresentar gráficos, que acabam por refletir sobre poucos livros e uma coleção feita na base de muito improviso e pouca determinação. Se essa é uma desvantagem documental e analítica, uma vantagem maior foi o partido tomado de associar a história dessa biblioteca à da própria Academia de Direito, fundada em 1827 no Largo de São Francisco. Hoje se sabe que as reações à instalação de uma escola em São Paulo foram fortes. Se era certo que precisávamos formar uma nova inteligência e um corpo de leis nacionais, já com relação à localidade selecionada as dúvidas eram maiores que as certezas. Afinal, se Olinda e depois Recife foram sempre entendidos como locais “naturais” para a criação de uma Faculdade de Direito (uma vez que aglutinariam a elite do Norte e Nordeste do país), já São Paulo, no começo do século 19, não passava de local ermo e, ademais – como se dizia à época –, iria “estragar a linguagem dos moços”.
De toda maneira, essas duas instituições seriam responsáveis por criar novas práticas de leitura, promover uma laicização cultural e alterar estruturas mentais naquela sociedade modesta. Que tudo isso ocorreria… basta olhar para os dias de hoje e reconhecer. No entanto, naquele contexto parecia difícil apostar. Talvez por isso a autora passe a descrever o ambiente vigente na capital dos paulistas, assim como vasculhe coleções particulares, com a intenção de apurar a existência de acervos e práticas de leitura mais socializadas. Se é difícil encontrar tais costumes na Corte, ou mesmo na antiga capital, Salvador, o que dizer de São Paulo?
O imperador retirara só um livro
Todo esse ambiente modesto só iria se alterar em meados do século 19, com o amadurecimento da Faculdade de Direito, a chegada regular de estudantes e a sensível mudança nos costumes locais. Atenta, Marisa Midori anota e coleta as novas formas de sociabilidade, expressas nos teatros, associações, clubes, sociedades maçônicas, tabernas, repúblicas estudantis, bares e – também – livrarias. Esse é o tema que acompanha todo o final do livro, que desenha a formação de novos consumidores e a criação de estabelecimentos voltados para um público burguês que começava a crescer.
Destaca-se, nesse sentido, a figura de Anatole Louis Garraux, considerado o primeiro livreiro de prestígio a criar uma loja em São Paulo, nos idos de 1860. A importância do estabelecimento era tal que Garraux foi considerado por contemporâneos como um verdadeiro “agente de civilização”. A livraria fecharia em 1935 e, segundo relatos, deixou saudades numa São Paulo que já ganhava ares de urbanidade mas ainda se ressentia com a escassa atividade intelectual.
O fato é que nada apaga o panorama de carência que marcou boa parte do século 19 paulistano. Parcas instituições, raras livrarias, leitores instáveis, colecionadores apenas diletantes. Como mostra O Império dos Livros, o ambiente era dado a todo tipo de “precariedade estrutural”. Poucos espaços, pouca prática, menos consumo. Por sinal, se a autora fez o que pôde para mapear as práticas locais, não foi possível averiguar o que efetivamente se e como se lia. Ou seja, se professores e alunos animaram hábitos de consumo e criaram novas demandas, para além disso é difícil avaliar ou prever. Assim, os números de obras expressos nos vários gráficos incluídos no livro restam, por vezes, um tanto vagos, já que não nos permitem mensurar quem ou quanto se lia. E isso não ocorria só em São Paulo; na corte também. Nessa mesma época, ficou famoso o relato do impiedoso viajante francês Arago que, em visita à Real Biblioteca, instalada no Rio de Janeiro desde os tempos de d. João, constatou que ela se encontrava sempre vazia. Ficou ainda mais pasmo quando consultou os livros de retirada e verificou que praticamente não havia movimento de entrada e saída de obras. O próprio imperador retirara só um livro (e não o devolvera).
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[Lilia Moritz Schwarcz é professora de Antropologia da USP e autora, entre outros, de O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay, as desventuras dos artistas franceses na corte de D. João (Companhia das Letras)]