Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A quem interessa a guerra do Rio

Silencioso nos três primeiros dias da guerra do Rio de Janeiro, o secretário de Segurança, Anthony Garotinho, escolheu na segunda-feira, 12, o Cidade Alerta, da TV Record, para falar sobre os conflitos. O ex-governador do Rio, segundo O Globo do dia seguinte, criticou a imprensa pela cobertura dos acontecimentos e se recusou a falar com outros órgãos de comunicação. Dois dias antes, ele havia dito aos jornalistas que nada sabia do que acontecia nos morros do Rio, porque estava descansando em Angra dos Reis – de onde, no sábado, decidiu voltar.

A população da Rocinha, que não estava descansando em Angra, sabia o que estava acontecendo. As imagens que o Jornal Nacional mostrou na própria sexta-feira – e que foram depois clipadas no Fantástico e em vários programas ao longo da semana – mostravam o mesmo espetáculo de pirotecnia que o telespectador brasileiro só havia visto antes na Guerra do Golfo e depois na invasão do Iraque. A diferença é que desta vez os combates estavam dentro de suas casas.

O secretário tinha suas razões ao tentar evitar a imprensa. A guerra em curso no Rio tem estreita relação com a evolução das favelas – que O Globo mapeou timidamente na terça-feira, 13 – mas principalmente com a estrutura de poder cristalizada nessas comunidades. Essa estrutura não se desenvolveu por acaso. Foi fruto de uma bem-arquitetada opção política. Não foram precisos nem 20 anos para que as favelas do Rio se transformassem em poderosíssimos currais eleitorais. A Rocinha, epicentro da guerra da semana passada, tem uma população maior que a de Genebra, na Suíça. Juntas, as favelas do Rio reúnem um milhão e meio de moradores – uma força notável na eleição de deputados, prefeitos e governadores. Há 20 anos, para dominar essa população, seria necessário mantê-la desinformada. Hoje, é preciso direcionar a informação. Basta que a velocidade seja mantida para que nos próximos 20 anos o poder político seja substituído pelo poder da bandidagem que muitos políticos, conscientes do que estavam fazendo, ajudaram a consolidar – e que não haja vestígios de civilização na cidade que um dia habitou um imaginário universal de paz e alegria.

O Rio chegou a esse ponto muito menos pela omissão de prefeitos e governadores que pela determinação de alguns deles em criar essa estrutura de poder nas favelas. É possível que uma vigilância mais enérgica da imprensa tivesse dificultado isso, ainda que não seja certo que isso fosse possível. Mas essa é, no mínimo, uma avaliação que agora se impõe.

Relembrando Clouseau

Hoje, não há muito o que se possa fazer pelo Rio de Janeiro. A pitoresca disputa travada no auge das batalhas na Rocinha entre o ministro da Defesa e o secretário de Segurança do Rio, que queria 4 mil homens do Exército para comandar, esconde uma realidade macabra: as Forças Armadas não intervêm no Rio porque as chances de um fiasco são enormes. A cada entrevista que dá o ministro repete uma boa metáfora para admitir isso: o Exército não tem algemas.

A pergunta que não quer calar é a seguinte: se os bandidos derrotarem as Forças Armadas, a quem restará recorrer? À intervenção externa?

A degradação da situação social no Rio chegou, no entender de muitos sociólogos, a um ponto de irreversibilidade. A deterioração dos valores parece tirada de uma tenebrosa obra de ficção. O estupro e o assassinato de uma menina de 12 anos vão parar num canto de página (O Globo, 11/4) e sequer são repercutidos no dia seguinte, porque já não impressionam ninguém. Em qualquer lugar do mundo, situações menos grotescas se transformariam em escândalos nacionais. Seriam debatidos por vários meses; derrubariam secretários, prefeitos, governadores. No Rio – e em alguns pontos da África – tornaram-se simplesmente parte do cotidiano.

O humor negro que emana das trapalhadas que se vêem todos os dias nas primeiras páginas dos jornais (o caso Jossiel, na semana em que se relançavam os filmes de Blake Edwards com o inspetor Clouseau, é o menor deles) geram um interminável material para os humoristas. Na verdade, tiram dos humoristas qualquer necessidade de intervenção sobre os fatos. A tradução não é que o carioca vê sua desgraça sem perder o humor; é que o cidadão resignou-se à realidade perversa que o cerca. A velhinha, como descreve Joaquim Ferreira dos Santos (O Globo, 19/4), sabe que não tem jeito e sobe o morro, vai em frente, ‘deixando o destino decidir a parada’.

Um papel essencial

A população não pode fazer outra coisa, senão deixar o destino decidir a parada. E, quando o responsável pela segurança no estado decide colocar a culpa na imprensa, deve-se admitir que ele atira no que vê para acertar no que não vê. Talvez a imprensa tenha mesmo uma grande parcela de culpa por não ter confrontado à altura, durante os últimos 20 anos, a invasão do Rio por políticos populistas capazes de sustentar que favelas não eram problema, mas solução. Talvez a imprensa pudesse ter perguntado mais alto: solução para quem?

A edição desta semana de Veja (data de capa 21/4/04) faz uma pergunta parecida, com duas décadas de atraso. Três dias antes de a revista ir para as bancas, um dos vários manifestos distribuídos pela internet em protesto contra a tomada do poder pela bandidagem, este por um certo ‘Movimento SOS Rio de Janeiro’, sob o título ‘Fora Rosinha, Fora Garotinho, Basta a Era Brizola’, dizia coisa semelhante. Havia de peculiar nesse texto um tom de sincera indignação que não aparece em manifestos parecidos, de natureza visivelmente política. Instâncias da imprensa que antes não pareciam propensas à indignação têm mudado de atitude. Na transmissão da final do campeonato carioca entre Flamengo e Vasco (domingo, 18), por exemplo, Galvão Bueno lamentou muitas vezes, com inédita irritação, a deterioração social que tomou conta do entorno do Maracanã. A quantidade de arrastões e assaltos antes e depois da partida parecia mesmo tirada de um exagerado material de propaganda.

Comentários simples mas revoltados como os de Galvão, ainda mais no contexto em que são feitos, servem para nos lembrar de perguntar se a tortura e o assassinato de Tim Lopes serviram para alguma coisa. O Rio está triste – e não se sabe se algum dia recuperará a alegria que por muito tempo impregnou a sua caricatura. Expressar essa tristeza é neste momento um papel essencial da imprensa. Mas é sua obrigação também investigar em que ponto – pela omissão, na melhor das hipóteses – ela pode ter colaborado para isso. E o que pode fazer para corrigir seus erros e ajudar a reverter a situação que ela, no mínimo, não ajudou a evitar.