Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Mestre-sala dos mares

Nos idos de 1957, o jornalista Edmar Morel (1912-89) foi até o cais da Praça 15, no Rio de Janeiro, onde lhe garantiram que acharia o ex-marujo João Cândido Felisberto (1880-1969), que, em 1910, ficara conhecido como ‘Almirante Negro’ ao liderar a rebelião contra os castigos corporais na Marinha. O encontro modificou a vida de ambos e gerou a escrita de um capítulo então obscuro da história do Brasil: A Revolta da Chibata, título que Morel criou para seu livro (no qual teve a colaboração do personagem principal) e que batizaria, a partir dali, o movimento.

João Cândido carregava cestos de peixe na beira da baía de Guanabara, palco da inédita rebelião na qual ele comandara, entre 22 e 27/11/1910, poderosa esquadra de guerra: vivia em situação de pobreza e dificuldades, nas periferias. Edmar, repórter e escritor, tinha o nome nas manchetes dos principais jornais desde os anos 1940, em matérias combativas e denúncias de grande repercussão. Nacionalista de esquerda e democrata, era ‘companheiro de viagem’ do Partido Comunista do Brasil (PCB).

Surgiu entre o marinheiro e o jornalista cumplicidade, logo transformada em amizade. João Cândido considerou A Revolta da Chibata (lançado em 1959, já está na quinta edição, pela Paz e Terra), o livro, como ‘minha história’ e literalmente assinou embaixo, participando de sessões de autógrafos. A convivência de ambos teve episódios sugestivos.

A imagem do comandante

No lançamento da 2ª edição, em 1963, autor e personagem compartilharam estande no Festival do Escritor (antecessor da Bienal do Livro). O velho marujo, calejado de perseguições e da luta contra o açoite, foi cumprimentado por Jorge Amado, Rubem Braga, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira e outros. Ao fim da sessão, não havia mais transporte para a Baixada Fluminense, onde morava o ‘Almirante Negro’, numa rua sem calçamento, esgoto e luz elétrica.

Morel foi hospedá-lo num hotel no centro. Tentaram 12 estabelecimentos; os recepcionistas de plantão, após olharem a figura simples e altaneira de João Cândido, repetiam: ‘Não há vagas’. Racismo aberto e não declarado. Finalmente, conseguiu abrigo no Hotel Globo, na rua do Riachuelo, na Lapa.

Nos dias do golpe civil-militar de 1964, ao saber que Morel tivera os direitos políticos cassados, João Cândido, preocupado, foi até sua casa: ‘Teria sido por causa do livro?’ O jornalista brincou: ‘Um a mais não faz diferença. Vamos tomar um uísque?’ E o marujo retrucou: ‘Não posso, o fígado não deixa. Tem suco de maracujá?’

Quando João Cândido faleceu, eu tinha nove anos. Meu avô Edmar contou que me levara duas vezes à casa dele, mas não me lembro. Pelo que li e ouvi de meu avô, pelo que converso com Adalberto Cândido, Candinho, filho caçula, hoje com 72 anos, formei uma imagem do comandante escolhido pelos 2.300 marinheiros rebeldes no episódio ocorrido 22 anos após a abolição oficial da escravidão.

Nem ódio, nem ressentimento

João Cândido possuía aparência modesta, mas altiva. Alto, esguio, enérgico – vestia-se de maneira aprumada e sóbria. Em casa, ficava de tamancos e roupas confortáveis. Era um herói da plebe e vivia entre os pobres, sem se intimidar diante dos poderosos ou dos letrados. O hábito de leitura impregnava seu cotidiano. Polido, reservado, recolhia-se quando não conhecia ou confiava no interlocutor. Mas se o verbo fluía, a memória transbordava em detalhes precisos.

Sisudo, há poucas fotos suas sorrindo, mas era bem-humorado: às vezes, escapava um sorriso discreto do rosto vincado de anos e sofrimentos. Não expressava ódio ou ressentimento, compreensíveis num guerreiro com suas experiências. A face angulosa, nitidamente esculpida, apresentava um toque cândido. Tinha a dignidade de um mestre-sala dos mares.

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Professor de história na Uerj, organizou a última edição de A Revolta da Chibata (Paz e Terra), de seu avô Edmar Morel, e Sentinela da Liberdade e Outros Escritos (Edusp), de Cipriano Barata