O surto de aftosa em Mato Grosso do Sul fez bem à imprensa. Estimulou reportagens de verdade, à moda antiga, com descrição de cenários, de movimentação de pessoas, de bichos e de coisas. Repórteres foram em busca de fatos no local e contribuíram, com informações fresquinhas, para o leitor formar opinião.
Mais uma vez o Valor mostrou o caminho, com uma reportagem sobre a divisa entre Mato Grosso do Sul e Paraguai. A repórter Marli Lima percorreu 60 quilômetros de uma estrada fronteiriça e contou o que viu. Registrou a presença de gado solto, de trânsito livre de animais entre os dois países, mencionou uma propriedade com reses não vacinadas e descreveu, sem precisar de muitos adjetivos, a vulnerabilidade da fronteira.
A aftosa pode ter vindo ou não do Paraguai, mas a reportagem elimina pelo menos uma dúvida: seria facílimo introduzir animais doentes em território brasileiro, porque a fiscalização é nula, ou quase, e não há barreiras à passagem do gado.
O Estado de S.Paulo repicou no dia seguinte com uma história semelhante. Descreveu também a livre passagem de animais e apresentou a opinião do delegado do Departamento de Operações de Fronteira (DOP), Antônio Carlos Videira, sobre a origem da doença. A aftosa, segundo ele, chegou com bois comprados no Paraguai para um frigorífico de Japorã (MS).
O relatório da investigação, no entanto, ainda não estava concluído e faltava resposta a uma pergunta muito importante: como poderia ter ocorrido contaminação, se o rebanho da Fazenda Vezozzo, onde apareceu o primeiro foco, estava, segundo os proprietários, vacinado?
O fato raro, nessa cobertura, não é propriamente a reportagem feita no local. É o testemunho, a história contada com base na observação do repórter e não no mero registro de informações e opiniões de outras pessoas.
Grudados no telefone
Boa parte da cobertura é realizada, hoje, por telefone. Quando o repórter sai da redação, é geralmente para entrevistas ou para receber, mesmo no local do evento, informações processadas. A reportagem esportiva é uma das poucas a oferecer descrições de eventos observados pelo jornalista.
O distanciamento dos fatos materiais é mais ostensivo no jornalismo econômico e agravou-se com a predominância dos assuntos financeiros. Alguns profissionais talvez nunca tenham visto a cara de suas fontes, mas aceitam, reproduzem e, com freqüência, assumem suas opiniões e explicações.
As histórias produzidas na região de Japorã, especialmente as descrições da fronteira, revalorizam uma das funções tradicionais e mais importantes do repórter: testemunhar os fatos, observá-los diretamente e contá-los ao leitor numa descrição fresca, isto é, não requentada.
Quando o repórter descreve a divisa sem barreiras, fazendas com cercas precárias, animais circulando livremente e pessoas transitando sem controle entre os dois países, o leitor recebe um depoimento muito mais importante que o de qualquer autoridade e pode formar sua opinião com maior segurança.
Esse tipo de jornalismo foi considerado, noutros tempos, trabalho rotineiro, o mais típico do ofício. Muitos jovens queriam ser jornalistas para cumprir exatamente esse tipo de tarefa. A iniciação – freqüentemente macabra – do ‘foca’ na reportagem policial era o primeiro passo na profissão de ver, ouvir e contar fatos interessantes.
Isso não excluiria a especialização, nem o aprendizado da análise. Mas o bom analista seria antes de mais nada o profissional habituado a usar a própria observação. O resto seria aperfeiçoamento.
Os padrões mudaram. Repórteres de jornais passam tempo demasiado na redação e grudados no telefone. Muitos de seus chefes também não costumam tomar sol nem chuva. Talvez se arrisquem menos a resfriados. Mas o leitor nada ganha com isso.
******
Jornalista