Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O saudosismo da mídia

No clássico da literatura 1984, George Orwell criou um país autoritário, chefiado por câmeras, com um chefe (o Grande Irmão) onipresente e um partido (o Socing – Socialismo Inglês) onisciente e onipotente. Um dos slogans do Socing era: ‘Guerra é paz’. Rapidamente, para o leitor que ainda não leu 1984, o país criado por Orwell, a Oceania, vivia em estado constante de guerra. Segundo os teóricos fictícios do clássico da literatura inglesa, viver em guerra era a melhor solução para se manter a paz em um país.

Tal argumento se justifica, pois em estado de guerra a sociedade se une em volta de uma causa que, a princípio, seria vencer a guerra. Depois, a de não perdê-la e, por fim, mas bem no fim mesmo, a utopia de viver em paz absoluta e de união com os outros povos. União essa que nunca chegará.

Na Oceania, cuja capital se chama Londres, apesar do partido vigiar tudo e todos, a guerra era sempre contra um dos países vizinhos. Dentro do seu território, mais precisamente dentro do Ministério do Amor (responsável pela tortura), a ‘guerra’ era para fazer os criminosos do pensamento amarem o Grande Irmão e, os que não tinham mais solução, eram jogados no buraco da memória.

É interessante ressaltar que 1984 foi escrito por Eric Arthur Blair (verdadeiro nome de Orwell) em 1949, um ano antes da sua morte, em janeiro de 1950. É necessário deixar claro que o conceito de Orwell não é fictício, é real. Guerra é paz. É só analisarmos o exemplo dos Estados Unidos, que vivem em guerra constante. Quando a guerra não aparece, os EUA inventam.

Quem faz a entrega das armas?

É isso que está acontecendo no Rio de Janeiro, onde o Brasil e o mundo puderam acompanhar ao vivo, a cores e com narração e comentários, a ação da polícia, em conjunto com o Bope e o apoio fundamental das Forças Armadas. Nas reportagens, na televisão principalmente, é possível acompanhar, muitas vezes com repúdio, o saudosismo dos repórteres e dos canais de TV com a ação da polícia. Em todas as reportagens audiovisuais é sempre ressaltado o clima de solidariedade entre os moradores das favelas, ou ao redor, em relação à polícia e suas atitudes. Fala-se em desejo da população. Evidente que a paz é um sonho de todos. Porém, a mídia apoia tal ‘guerra’ ou, o estado permanente de ‘guerra ao crime’, como tem sido intitulado. Este fato, por si só, gera muita notícia e, acima de tudo, rende audiência e vende jornal.

A cobertura jornalística tem passado a visão de que toda cidade do Rio de Janeiro está em guerra contra o tráfico, enquanto as ações se resumem à Zona Norte carioca, mais precisamente ao complexo de favelas do Alemão. Por telefone, com amigos que residem lá, é clara a tensão de todos, mas ‘guerra’ mesmo só na favela.

Boletins ao vivo enaltecendo as prisões; as apreensões de armas de calibres que só o Exército brasileiro deveria ter; malas recheadas de munições; tabletes de drogas. Muito mais que links ao vivo, com repórteres de colete e entrevistas com policiais do Bope, ou coronéis dentro de estúdio elogiando seu próprio trabalho, a mídia devia questionar como os traficantes que fugiam pela mata, carregavam armas que só o Exército tem. Como essas armas chegam lá? Pelo correio? Quem faz o frete?

A paz dos cemitérios

A grande imprensa, principalmente TV Globo e Record, saúda todas as ações da polícia com entusiasmo. No domingo (28/11), na Record News, em link ao vivo, uma repórter declarou que a polícia está passando um pente fino na Vila Cruzeiro e revistando todos os cidadãos ‘com delicadeza’.

A ideia dos jornalões, da TV dos Marinhos e da TV da Universal, em querer passar ao telespectador que policial faz alguma coisa com sutileza, principalmente em estado de ‘guerra’, é brincar com a inteligência de todos nós.

Guerra é paz. Com bem disse Marcelo Freixo, deputado estadual pelo Rio de Janeiro, na Folha de S.Paulo de domingo (28/11), ‘essa lógica da guerra prevalece no Brasil desde Canudos. E nunca proporcionou segurança de fato. Novas crises virão. E novas mortes. Até quando? Não vai ser um Dia D como esse agora anunciado que vai garantir a paz. Essa analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial não passa de fraude midiática’.

Foi necessário que bandidos tacassem fogo em ônibus e carros particulares para que o governo de Sérgio Cabral ordenasse a invasão da Vila Cruzeiro. Na verdade, é sempre necessário que intervenções drásticas aconteçam para os governantes tomarem medidas cabíveis, seja mandar invadir o morro, ou negociar com bandido, como fez o governador de São Paulo, Cláudio Lembo, em 2006, quando o PCC tacou fogo em São Paulo e matou 55 pessoas (entre policiais e civis).

A política brasileira precisa mais de ação preventiva que ações de guerra. As UPPs não são suficientes porque faltam os direitos básicos. Não é só reprimir favelado. É evitar que as drogas e as armas cheguem ao morro. É condenar os policias formadores de milícia. É treinar a polícia carioca, principalmente para não matar e depois perguntar quem é.

Todos esses temas e questões foram esquecidos ou omitidos, como queiram, pela grande mídia. Ao invés de questionar e investigar o que será feito com a segurança da Vila Cruzeiro e da cidade como um todo, a mídia e seus agentes preferem esperar outra ‘guerra’ para a população ter a paz… de cemitério que ela, a sociedade, merece.

‘Guerra é paz e ignorância é força.’

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Jornalista, Natal, RN