Novembro de 2010 ficará marcado na memória do Rio de Janeiro pelo tumulto que criminosos espalharam pelas ruas, com mais de uma centena de veículos incendiados e muitos ataques a instalações policiais. Mas políticos e governantes talvez prefiram dizer que o fato histórico está no êxito da operação policial que se seguiu. O fato de uma busca policial atingir seus objetivos se torna acontecimento marcante quando o outro lado é muito poderoso ou a situação é extremamente difícil. Ou ambas as circunstâncias, como é inevitável admitir no caso no Rio. Vimos uma das maiores demonstração de força e agilidade das organizações criminosas e o poder de articulação de diferentes grupos no sentido de abalar a população e desafiar autoridades.
Essas chamas do Rio lançaram luz sobre duas verdades. A primeira: queremos ordem e segurança. A segunda: nós, como sociedade, pouco fizemos para merecê-las.
Isso se explica por muitas razões, a começar pela mais óbvia: durante anos, sob a tolerância de nosso olhar passivo e de uma imprensa conformada, governantes por nós escolhidos deixaram que se perpetuasse a temível convivência da cidade com a vigorosa ousadia do crime. Não bastasse esse fato, vale repetir que os negócios dos traficantes estão no nariz de uma multidão e o lucro daqueles sai do bolso dela. Também somos nós os que se dão por convencidos quando a segurança pública se limita a empurrar temporariamente os criminosos e suas facções para territórios restritos, como a vovó que enfrentava a serpente dando-lhe vassouradas e empurrando-a para um canto do quintal, na ilusão de ter cumprido uma ação vitoriosa.
O detalhe desprezado
Não se trata de atribuir à população a culpa pela violência no Rio, mas de reconhecer que, além das históricas falhas do Estado e da benevolência das leis, em última instância, nós, sociedade e profissionais de imprensa, temos responsabilidade nessa história. Diante das repetidas demonstrações de força e ousadia do crime, o que temos feito, além de vestir roupa branca e caminhar em grupo até a areia? Quantas vezes nos mobilizamos com determinação para exigir soluções definitivas? Alguma vez nos dirigimos ao legislativo ou ao executivo com a mesma garra com que sacudimos estádios de futebol ou nos lançamos na Sapucaí disputando um troféu de carnaval?
Como agimos quando advogados empossados na cadeira de homem público interferem na produção de leis que mais tarde facilitarão o trabalho do seu escritório na defesa de seus clientes? Que providências exigimos quando vemos quadrilhas urbanas com o poder de abater helicópteros da polícia? Como protestamos ao saber que os autores dos crimes mais chocantes acumulam condenações em liberdade e colecionam reduções de pena e demais generosidade das nossas leis? Como reagimos ao ver nomes célebres em estreitos laços com traficantes?
Nos últimos anos, se alguma ação de longo alcance foi empreendida pelo poder público, ela se concentra nas Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs. O detalhe desprezado é o seguinte: a principal razão dessa iniciativa não foi a insistência da imprensa nem a exigência da população, mas a expectativa de comitês internacionais, que querem ambiente seguro na Copa do Mundo de 2014 e nos Jogos Olímpicos de 2016. Porém, na fuligem do rescaldo se esconde uma pergunta que não se calou ao fogo, aos blindados nem à insanidade dos bandidos: e depois?
Que seja uma lição definitiva
Depois da Copa e da Olimpíada, como ficará o Rio? Se valer a tradição, a resposta é conhecida, pois há muitos anos o ciclo se repete. Quando a serpente se encolhe, a imprensa muda de assunto, as autoridades passeiam e as pessoas voltam ao funk, embora alguns prefiram o velho samba. Então, qualquer dia o clã da serpente ressurge, novas saraivadas nos acordam, as sirenes esgoelam, as manchetes bradam e tudo se repete, com intensidade ainda maior.
Até aqui, autoridades e diversos setores da imprensa comungaram do mesmo vício. Pautaram-se muito pelo imediatismo e pouco pelo que se oculta nos horizontes. Ou, mais precisamente, em certos morros. Tal como tantos governantes, a imprensa se apega ao dia-a-dia e se afasta dos aspectos preventivos, aliviando a pressão sobre o governo na cobrança de responsabilidades estratégicas. Com isso, generalizam-se a atuação superficial do setor público e a miopia de uma imprensa acomodada à rotina reativa e alheia às pautas proativas.
Que novembro seja uma lição definitiva. Restitua-se de vez a segurança, ainda que por ela pouco tenhamos feito.
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Jornalista, Brasília, DF