Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Purgatório da beleza e do caos

Enquanto o Brasil inteiro assiste ao filme Tropa de Elite nas telas de cinema, a população do Rio de Janeiro o vê em 3D, na porta de suas casas, pelas ruas e esquinas da cidade. Com uma administração pública voltada para a praia e de costas para os morros e para a população que neles vive, o tráfico de drogas foi fazendo a parte do Estado nas favelas cariocas. Atendendo e dando suporte a uma população que parecia não existir, que ficava à margem da paisagem, atrapalhando o visual, os traficantes começaram a reinar, se tornando o que o poder público nunca foi para aquela parcela esquecida e abandonada da sociedade. Era o início da construção de um império de areia e pó.

O grande equívoco é que os governos esqueciam que, por detrás daqueles casebres, havia gente; carente de tudo, ou quase tudo. Pessoas que moram na segunda maior capital do país, cartão postal para o mundo, vivendo como se estivessem na idade da pedra, sem o mínimo de dignidade e de cidadania. Foi aí que o tráfico e a bandidagem encontraram guarida, um espaço enorme para crescer, florescer e fazer fortuna.

Para uma população que vive de vento, o tráfico tornou-se uma indústria dentro das grandes e pequenas favelas, garantindo emprego, renda e a possibilidade de ascensão a meninos e meninas desde a mais tenra idade. Era tudo muito sedutor para quem não via nada além da linha do horizonte. Financiado pelos que estão à praia, ao som da brisa e das ondas, o tráfico de drogas foi crescendo e se aparelhando, tendo a certeza clara da impunidade e de que a fonte nunca secaria. Assim foi durante anos e anos, tendo, na maioria das vezes, o apoio e a proteção dos moradores das favelas, que tinham no tráfico o que nunca tiveram no Estado e em suas repartições. Não é exagero lembrar que a única representação do Estado que subia as favelas cariocas era a polícia, ou seja, a força repressora.

A bala perdida dos governantes

As favelas cariocas ficam todas em morros. Nelas não se planta maconha, não se beneficia cocaína e nem se fabricam armas. No entanto, elas estão sempre cheias delas. A droga vem toda de fora, em grandes carregamentos e quantidade, garantindo o abastecimento regular das facções e a devida parcela do usuário de Ipanema e Leblon, que receberá em casa, com toda segurança, sua cota do final de semana. Há todo um aparato militar devidamente credenciado e aliciado para garantir a chegada dos carregamentos de drogas e armas vindas de todas as partes do mundo aos morros cariocas. É importante destacar que nunca o tráfico de drogas no Rio conseguiria montar sua logística de armazenamento e distribuição sem a devida participação das polícias e do poder institucionalizado.

Esse suporte foi fundamental para a militarização dos morros, que contam hoje com um arsenal de dar inveja a qualquer exército, exibindo em plena luz do dia armas exclusivas das Forças Armadas. É o grande sinal de que em alguma parte todas essas instituições se encontram, compondo esse surpreendente império regido pelo tráfico de drogas na cidade maravilhosa. É aí que está o grande financiador das metralhadoras que cantam heroicas nas noites cariocas, dos fuzis que cruzam em raios o céu estrelado das noites sem lua do Rio de Janeiro. O tráfico não começa nos morros, apenas tem o seu ponto final lá, a sua distribuição, a parte que suja as mãos.

Essa é a realidade, o cenário de uma guerra anunciada, que governos repetidos insistiam em não enxergar. Entre a omissão dos governos e os chefões do crime organizado, está a população brasileira, que sempre recebe no peito uma bala perdida de seus governantes!

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Jornalista e escritor