Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uma pergunta sem resposta – há 18 anos

Na noite de 25 de maio de 1992, uma segunda-feira, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcello Alencar, achou que rir fosse o melhor remédio. Entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, deu-se ares de oceânica tranqüilidade e declarou que eu estava indo longe demais. E riu. Outros ali presentes riram também. Eu me referia a um fenômeno que, na época, ainda se esboçava: a formação de um Estado paralelo em morros, favelas ou comunidades do Rio de Janeiro, um Estado paralelo sob o comando do crime, em especial do narcotráfico. O prefeito riu e não respondeu. Lá se vão mais de dezoito anos.


Lembrei-me desse episódio nesses dias em que as Forças Armadas e mais o Bope e toda a polícia se lançam em coalizão para ocupar favelas da cidade maravilhosa. Movem uma guerra contra o narcotráfico. O objetivo é retomar territórios em poder dos traficantes, hoje armados como um exército de centenas de combatentes, que têm granadas mas não têm camisa. A fisionomia dos enfrentamentos é a fisionomia de uma guerra de fronteira. Sem tirar nem pôr. O Estado brasileiro age para retomar bolsões de terra com centenas de milhares de habitantes que, na prática, já não lhe pertenciam.


Isso aparece explicitamente na fala do secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, que, na quinta-feira (25/11), após a invasão da favela da Vila Cruzeiro, na Zona Norte, disse que o objetivo central é tirar território do tráfico. Eis as palavras exatas do secretário:




‘Foi tirado dessas pessoas o que nunca foi tirado, o território. Seu porto seguro. Eles faziam suas barbaridades e corriam para seu reduto, protegidos por armas de guerra. É importante prender, mas é mais importante tirar o território. Se não tirar o território, não se avança.’


Contexto da impunidade


A mesma lógica apareceu, também de modo explícito, no editorial de O Estado de S.Paulo de sábado (27/11), cujo título, mais do que expressivo, ‘A tomada de Vila Cruzeiro’, alude a um capítulo da participação brasileira na Segunda Guerra, a tomada de Monte Castelo. Outra vez, a imagem da guerra de ocupação é o que predomina.


No domingo (28/11), na Folha de S. Paulo, é a vez de Clóvis Rossi tocar na mesma ferida, mas agora fazendo a volta completa. Em sua coluna da página A2, sob o título de ‘O Exército e o ovo da serpente’, ele escreve:




‘Do subchefe operacional da Polícia Civil do Rio, Rodrigo Oliveira, na quinta-feira: ‘A comunidade [da Vila Cruzeiro] hoje pertence ao Estado’.


Que bom. Mas é indispensável perguntar: não deveria ter sido sempre assim? E não só com a Vila Cruzeiro, mas com todas as comunidades espalhadas pelo Brasil.


Por não ter sido sempre assim, fertilizou-se o campo para a criminalidade, a grossa e a miúda.


Cabe também perguntar – e talvez seja a pergunta-chave – por que demorou tanto tempo para recuperar a Vila Cruzeiro se, agora, todo mundo diz que se trata de um bastião do narcotráfico?’


Avancemos com as perguntas de Clóvis Rossi. Será que as autoridades do Estado, quer dizer, do Estado oficial, não sabiam que, sem presença do Estado, o tal Estado oficial, nessas áreas em que vige o Estado do narcotráfico, essa guerra iria ter de acontecer um dia? Será que elas não sabiam que os resultados dessa guerra podem ser pífios? Será que elas não sabiam que o que falta nas favelas não é a tropa – hoje, por certo, indispensável – mas escola, água, luz, cidadania?


Quando Marcello Alencar fez pouco da minha pergunta, ele não sabia que, àquela altura, já vinha sendo costurada a promiscuidade que assegurava a impunidade entre políticos corruptos, policiais idem, traficantes de armas e drogas – e consumidores grã-finos?


Poder inoperante


Transcrevo, a seguir, o diálogo em que tomei parte no Roda Viva, naquela segunda-feira de maio de 1992. Imediatamente antes da minha pergunta, Armando Nogueira, na bancada de entrevistadores, começou a falar do narcotráfico. De modo brando:




– Prefeito, parece que não há a menor dúvida que há uma condenação, no mundo inteiro, à chamada mega-cidade. E parece que a violência é um mal de todas elas, não há a menor dúvida. Mas no Rio de Janeiro nós temos um ingrediente que tem complicado nos últimos dez anos: este problema no Rio que é o narcotráfico. Qual é a sua visão do problema do narcotráfico na geografia do Rio de Janeiro?


Eu, então, antes que o prefeito iniciasse sua resposta, entrei com um ‘adendo’ à questão posta por Armando Nogueira:




– Eu posso só pegar uma carona pequena nessa pergunta? Porque além deste problema do narcotráfico existe uma outra diferenciação no Rio de Janeiro, que a criminalidade, principalmente o narcotráfico, constitui um poder político diferenciado. Um poder político judiciário, porque o narcotráfico organiza julgamentos e execuções, e a imprensa registra inclusive julgamentos com absolvições. Um poder político executivo, porque os traficantes, os comandantes nos pontos de tráfico, promovem ‘benfeitorias’ e acabam administrando, em termos executivos, aquela região. E um poder político também legislativo, uma vez que o narcotráfico impõe as regras de conduta dando origem ao que se chama de um direito alternativo. Então ali existe uma duplicidade de poder e existem regiões onde o único poder político é o poder da criminalidade. Então esse narcotráfico, que o Armando falou que existe…


Minha pergunta era longa demais, por certo, e criou uma ansiedade no estúdio. Marcello Alencar, para descontrair o ambiente e esvaziar a gravidade do assunto, resolveu me interromper e desconversar:




– Eu acho que você está indo muito longe, meu caro.


Tentei retomar, em vão:




– Pode ser que esteja, mas…


O apresentador do programa, Jorge Escosteguy, riu junto com o entrevistado:




– A carona era pequena que ele ia pegar…


Insisti:




– Eu queria que o senhor comentasse essas diferenciações.


O prefeito começou a responder, pela tangente:




– Eu devo te dizer que há realmente, e não há como ocultar… Quer dizer, muita, muito registro quanto a incidência da traficância na nossa cidade, mas se vocês apelarem…


Armando Nogueira atalhou:




– Prefeito, quando eu falo da geografia…


Marcello Alencar prosseguiu:




– … pras leis de mercado…


Armando:




– É por causa do morro, deitado sobre a cidade facilitando o acesso…


Alencar:




– Armando, não existe uma causa, existe co-causa disso, isso também não é geração espontânea. Quer dizer, de repente aparece a droga, e ela apareceu porque houve um relaxamento e o governo é frágil… Não, isso daí é uma construção. A sociedade está enferma, mas não só aqui, no mundo inteiro a questão… Eu estive no Canadá e o prefeito da cidade, que se tornou até meu amigo, confidenciou os dramas que vive. Hoje, nos países de primeiro mundo, já se cogita legalizar a venda de drogas, de fornecer inclusive a droga. Esse problema da droga não se esgota aqui nessa materialidade dos nossos morros, pelo traficante que tem uma hegemonia em determinado ponto. Não, isso é um fenômeno do nosso tempo. Aí estão as revelações que no mundo inteiro a droga… Eu acredito que as estatísticas registrem que o grande mercado das drogas sejam os Estados Unidos da América.


E assim ficamos naquela noite.


vídeo está aqui. Pelo menos é divertido. Pode ser que você, leitor, também ache graça. Mas que eu tinha razão, eu tinha. Não fui longe demais. Longe demais foram as autoridades, com sua omissão, sua vista grossa, sua permissividade, sua ausência de solidariedade aos que mais sofrem. O caos em que se encontra o Rio de Janeiro agora não é obra de traficante nenhum. É obra, isto sim, de um poder público inoperante. Pessoalmente, até que tenho uma boa imagem de Marcello Alencar, mas não posso deixar de constatar: o caos do Rio de Janeiro foi produzido ao longo de décadas por políticos que fingiam que o problema não era com eles, ou que fingiam que a situação dos morros cariocas era igual à situação do Canadá.

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Jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM