A semana foi agitada e não faltou assunto para os jornalistas e comentaristas fazerem a festa: o Facebook formou seu comitê político, Nova York foi invadida por manifestantes inspirados na revolução no mundo árabe e a Amazon anunciou o lançamento de seu tablet por uma fração do preço de seu principal concorrente. O Rock in Rio foi para sua segunda semana no Rio, e o Digital Age 2.0 aconteceu em São Paulo.
Mas o assunto principal apresentado pela imprensa foi a declaração da desembargadora Eliana Calmon, corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), à Associação Paulista de Jornais, na segunda-feira (26/9). Ela quer ampliar, por meio da emenda 135, o controle externo do Judiciário e estabelecer o CNJ como órgão concorrente ao STJ como fiscalizador das Corregedorias Estaduais de Justiça. (Um órgão concorrente tem os mesmos poderes das outras autoridades controladoras: podem aplicar penas e punições; um órgão subordinado não tem todas essas prerrogativas.)
Muitos magistrados não gostaram do que ela disse. A corregedora afirmou que “bandidos escondiam-se por trás da toga” e os juízes contra-atacaram com uma ação de inconstitucionalidade da emenda 135. O Jornal das 10, da Globonews (26/9), exibiu parte do texto onde ela usa a expressão execrada pela maioria dos magistrados: “bandidos de toga”. Os juízes exigiram que ela citasse nomes. Doze, dos 15 membros do Conselho Nacional de Justiça, repudiaram a declaração da corregedora.
Repúdio a “acusações levianas”
A desembargadora vem enfrentando forte oposição porque é uma crítica feroz das condições precárias da Justiça de primeira instância e por ser uma ardorosa defensora do controle externo do Judiciário. Em 15/9, ela declarou ao Fórum Nacional do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), em painel sobre o Judiciário:
“A Justiça de primeira instância está sucateada. Faltam equipamentos e servidores; os juízes estão sobrecarregados. Há muitos processos com sentença acumulados nos cartórios, porque não há, sequer, servidor para fazer o registro necessário à publicação da sentença.”
Mas a proposição da desembargadora mais detestada pelos magistrados é a implantação do controle externo nos Tribunais Estaduais de Justiça, que preferem manter o status quo que deixa a supervisão e a fiscalização da Justiça Estadual entregues às corregedorias locais. E acreditam que trazer o controle externo é inconstitucional. Uma arbitrariedade “pior do que aquelas do tempo do autoritarismo”, comentou um magistrado indignado.
Em 27/9, o Globo.com publicou a nota de repúdio dos magistrados descontentes, liderados pelo ministro Cezar Peluso:
“Sem citar o nome da corregedora, a nota divulgada por Peluso ‘repudia, veementemente, acusações levianas que, sem identificar pessoas, nem propiciar qualquer defesa, lançam, sem prova, dúvidas sobre a honra de milhares de juízes que diariamente se dedicam ao ofício de julgar com imparcialidade e honestidade, garantindo a segurança da sociedade e a estabilidade do Estado democrático de direito, e desacreditam a instituição perante o povo’.”
“Cúpula dos tribunais já se viu sob ameaça de punição”
O repórter Felipe Seligman, da Folha de S.Paulo online foi ao cerne da questão, na terça-feira (27/9):
“Essa situação revela a guerra velada entre Calmon e Peluso. Enquanto a primeira defende que o CNJ tem de apurar e punir magistrados que cometeram irregularidades, o segundo afirma que o conselho deve esperar decisões da corregedoria dos próprios tribunais antes de agir.”
Em outras palavras, não aceitam ser julgados diretamente pelo Conselho Nacional de Justiça sem o concurso anterior das corregedorias e tribunais locais. Aqui cabem algumas questões: deve o local preceder o federal, nas decisões judiciais? Não é verdade, em termos constitucionais, que nenhuma ordenação jurídica local pode contrariar sua contraparte federal? Ou a instância estadual deve ter a primazia e subordinar a justiça federal? O Conselho é órgão subordinado ou concorrente ao Superior Tribunal de Justiça? São perguntas que devemos ter a prudência de fazer. A maior parte da sociedade e a imprensa acreditam no Conselho como órgão concorrente, e como tal, investido do poder de investigar e punir.
Na quinta-feira (29/9), o Estado de S.Paulo online apontou fatos importantes: dos 29 corregedores estaduais de Justiça, 18 respondem ou responderam a processos no próprio CNJ. Todos, segundo o Estadão, são “autoridades atuais e recentes”. E ainda mais:
“Nos tribunais regionais federais, três dos cinco corregedores já foram ou são alvos no CNJ. Dos 27 presidentes dos tribunais de Justiça do país, 15 têm processos em tramitação ou arquivados no Conselho. Dos cinco presidentes de tribunais regionais federais, dois possuem processos em tramitação ou arquivados no CNJ.Os números mostram que a cúpula dos tribunais brasileiros já se viu sob a ameaça de punição pelo CNJ, fato que pode explicar a resistência da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) às investigações do órgão.”
A “solução de compromisso”
Mas, infelizmente, no dia anterior, o G1, da Globo.com, já havia publicado o previsível: o Supremo havia “encerrado a sessão sem julgar o limite para fiscalização de juízes”. O ministro Cezar Peluso, como presidente do órgão, tem a pauta das reuniões nas mãos: é ele que decide se um determinado assunto vai ser julgado ou não. O desembargador, que não gosta da ideia de controle externo no Judiciário, decidiu não colocar a questão em julgamento.
No mesmo dia, e no mesmo veículo, foi publicada a razão para a decisão de não julgar a proposta do CNJ: “O momento não é adequado”, declarou um dos ministros, devido às declarações da própria corregedora, “que provocaram celeuma” sobre o cerceio da atuação do Conselho. “O momento não é bom para o julgamento”, declarou um magistrado. Irônico, para dizer o mínimo. Além de repudiada pela maioria de seus pares, a corregedora ainda foi culpada de provocar tumulto e impossibilitar o julgamento de uma causa que interessa não só a ela, mas a toda a sociedade brasileira, que já está farta de abusos, corrupção e impunidade nos outros poderes.
Se o momento não é bom é porque a sociedade e a imprensa já decidiram de que lado estão. E não é o dos magistrados. Depois da posse da corregedora Calmon, informou o G1 no mesmo dia, “o Conselho Nacional de Justiça condenou em processos administrativos 50 magistrados acusados de irregularidades no exercício da profissão, segundo dados da assessoria do conselho. Desse total, 24 foram punidos com aposentadoria compulsória, que é a pena máxima do órgão administrativo. Outros 15 foram afastados pelo CNJ em decisões liminares. Além disso, seis juízes foram colocados à disposição, três foram removidos de seus postos originais e outros dois apenas censurados”.
Entretanto, ainda no dia 28 o Estadão publicou que um acordo havia sido feito. Segundo tal compromisso, o Conselho só poderá intervir depois de alguns determinados dias, quando as corregedorias estaduais tiverem esgotados seus prazos para tomarem providências contra magistrados denunciados. Se depois deste prazo nada for feito, o Conselho poderá processar os juízes. A “solução de compromisso” claramente mantém a situação atual, sem nada mudar: o CNJ ainda está manietado pelo artifício engendrado para imobilizar seus poderes de processar e punir, de forma direta, sem ter que passar pelas corregedorias locais.
Cruzar os dedos
O ministro Gilmar Mendes rechaçou a existência de ajuste. O Globo.com publicou (29/9): “Não há acordo algum. É uma questão de reflexão. O ambiente ficou meio crispado. Estamos letárgicos. Tendo uma disputa interna que gera um atraso”, declarou ele. Acordo ou “reflexão”, o assunto não foi votado claramente porque a desembargadora havia conseguido mobilizar imprensa e sociedade a seu favor. E a grita ia ser grande, se ela perdesse a causa nesse momento.
A corregedora vinha fazendo um excelente trabalho. Mas seus opositores conseguiram neutralizar por enquanto sua investida certeira contra a soberania das corregedorias dos Estados sobre o Conselho Nacional de Justiça. A jornalista Eliane Cantanhêde, no programa Em Pauta, do canal pago Globonews (30/9) lembrou o corporativismo da maioria dos magistrados nos tribunais estaduais. Que estão irredutíveis em seu desejo de evitar qualquer tipo de controle externo, e só querem ser julgados por colegas. A jornalista comentou também que a desembargadora conta com o apoio da sociedade e da imprensa.
O acordo do dia 28 pode ter adiado a decisão do Supremo. E a corregedora acredita que vai perder a causa na última instância. Se isso acontecer, a sociedade brasileira vai perder uma das maiores oportunidades que já teve de acertar as contas com a Justiça, ao enfraquecer o poder do único órgão de controle externo do Judiciário. Mas a luta ainda não está perdida. O Estadão publicou em 1º de outubro que seis dos conselheiros que assinaram a nota de repúdio agora decidiram voltar atrás e retirar seu apoio ao presidente do Supremo. A hipótese é que o ministro Peluso teria usado “a confusão estrategicamente para defender o que pensa sobre o órgão”, declarou um dos corregedores que mudaram de lado. E ainda “redigiram artigo em apoio à corregedora”, informou o periódico virtual.
A ministra agora tem mais seis votos, o apoio da sociedade e algumas de suas principais instituições ao seu lado: a Câmara e o Senado, a OAB e o Ministério Público. Vamos cruzar os dedos e esperar que o Conselho vote a favor da Justiça e que os “legalistas” que defendem os limites do poder do CNJ sejam derrotados.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]