Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

É proibido reclamar do capitão Nascimento

Há uma frase em Tropa de Elite 2, dita pelo protagonista logo no início da trama, que faz valer o filme. Algo próximo de ‘intelectual maconheiro de esquerda que vive defendendo vagabundo com papo de direitos humanos’ é a definição que o capitão Nascimento, novamente interpretado de forma célebre por Wagner Moura, dá ao personagem de Irandhir Santos, o professor e, posteriormente, deputado Fraga. O protagonista ainda completa, mais à frente, quando o estopim inicial do longa transforma Fraga em candidato a deputado, que todos os maconheiros do Rio de Janeiro iriam votar nele. Ao menos na ficção votaram.

É claro que a frase preconceituosa do capitão, sozinha, não elucida muitas coisas. Mas com poucos paralelos ela pode ganhar corpo. Tal máxima traz consigo a ideologia do Batalhão de Operações Especiais (Bope). De forma muito bem representada por Mathias (André Ramiro), o discurso generalizado do batalhão é o que acaba causando o massacre em Bangu, dando início à trama do filme – quando o soldado ignora qualquer hierarquia num desejo de fazer o que ele aprendeu ser a ‘justiça’, desobedecendo ao próprio Nascimento e matando o dito chefe do Comando Vermelho, interpretado por Seu Jorge. Posteriormente, o personagem de Wagner Moura até confirma que a atitude de seu pupilo estava legítima: ‘Fez o que aprendeu a fazer no Bope’, diz.

Também é da primeira frase de Nascimento que nasce o pontapé central para a real reflexão de Tropa de elite 2. De forma completamente paradoxal, já ao final da narrativa, Nascimento entende que sem os intelectuais de esquerda não é possível sanar o problema ‘político’ da Segurança Pública do Rio de Janeiro – e de todo o país. Fica claro, na segunda aparição do herói do Bope, que problemas como a corrupção, falta de recursos militares, policiais mal treinados e com salários defasados, ou até mesmo milícias que atuam como um Estado paralelo em comunidades carentes, não são o centro da questão. De forma muito mais tangível e coerciva, o filme mostra os que articulam e gerem tais percalços – deixando claro a escolha política de se gerir o sistema desta forma.

Clemência antecipada

Na fábula cinematográfica, o capitão – que passa a ser subsecretário de Inteligência da Secretaria de Segurança Pública – compreendeu que mais do que armas e carros blindados são necessários para sanar tal gargalo no Brasil, visto que o problema é político.

Dessa forma, o longa perde força, deixando no ar que o idolatrado ex-policial do Bope da ficção precisa combater a cúpula política que permite tais negligências, o dito ‘sistema’. Aqui, Padilha desenha uma elite política que norteia as ações da Secretaria de Segurança Pública carioca, permitindo – e em grande parte participando – a ação de milicianos que buscam única e exclusivamente lucrar. Tanto os milicianos quanto os políticos que os protegem, extorquem a população de desprovidos que compõe os morros da cidade maravilhosa, transformando-se em referência de deterioração da Segurança Pública brasileira. Para engano do narrador de Tropa de Elite 2, tais ações não são combatidas com fuzis ou ‘caverirões’ do Bope, mas sim, com ‘intelectuais maconheiros da esquerda’ que se opõem ao que está posto.

E é aí que mora a maior lição da última empreitada de José Padilha, mesmo de forma paradoxal. Apesar da discussão, o entendimento de que se deve combater os verdadeiros títeres da Segurança Pública aparece de forma muito minguada, não elucidando o processo de amadurecimento pelo qual o capitão passa e que o faz entender que não é o tráfico o grande inimigo de sua história. Mesmo com a tentativa, foi a ‘faca na caveira e porrada na vagabundagem’ que marcaram Tropa de Elite 2 – já que não há tempo para contemplar e refletir com um filme que transcorre em estado de transe permanente.

Mas sim, ele é quase intacto como muitos veneram. Notadamente, também peca de forma infantil em outros momentos, e por isso há necessidade de se equilibrar a euforia cega sobre o longa. Criticar um filme que estreou em 636 salas do país e já é o mais visto de 2010 pode parecer uma ofensa ao sagrado. Por isso, a clemência antecipada ao fazer qualquer comentário negativo sobre Tropa de Elite 2.

Não há em quem confiar

A princípio, vale mencionar a tentativa do diretor de (re)explicar o óbvio, reproduzindo clichês do tipo ‘apesar das possíveis coincidências com a realidade, esta é uma obra de ficção’. A simples afirmação nada mais é do que lugar-comum desnecessário, considerando o tamanho estrondo ocorrido no primeiro filme – visivelmente repetido no segundo.

Antes de qualquer coisa, os envolvidos esperavam retorno financeiro – e obtiveram, com bilheterias para lá de estrondosas e patrocínios fervorosos como Brahma, Samsung, Companhia Siderúrgica Nacional, Unimed, Riachuelo, Globo Filmes e governo do estado do RJ, citando por alto. Padilha, com olhar empresarial, tornou-se franco-atirador quando o assunto é encher salas de cinema. Cenas dramáticas, tramas malévolas, segurança pública e corrupção, temas na ordem do dia, são necessários ao bom andamento do filme – bem elucidados, por exemplo, com a relação piegas de Nascimento com o filho. Interessante pensar que, contrariando preceitos comerciais, o filme invalida a noção de que o público rejeita o cinema nacional por trazer a própria realidade à tela. Na contramão da violência, o povo sorriu, e a segunda incursão da Tropa é repleta de cifrões.

Dessa pseudo-realidade transposta para as telas emana outro problema. Para muitos, o que o diretor havia produzido na primeira versão da saga de Nascimento corresponde a uma realidade irrefutável – coisa que, muitas vezes, uma obra de arte não consegue e nem pretende dar conta – que é reconfirmada com a ação do herói neste segundo episódio, lutando com o ‘inimigo outro’. Tudo ali pode ser posto à prova, principalmente por ser um ‘recorte’ de uma estória, e não um ocorrido em si. E se fosse um fato, seria a representação de um fato. Assim, os comentários podem ser mais brandos no que tange à reconstrução do dia-a-dia carioca. Mesmo com as recentes incursões do Bope – o real, não o ficcional – para conter os trágicos e recentes ataques no Rio, o batalhão vendido por Nascimento é heroico de forma exacerbada. E isso não se resume ao Bope: a delação coletiva promovida pelo subsecretário de Inteligência em todo o alto escalão da Secretaria de Segurança Pública beira os clichês policiais usualmente reproduzidos em Hollywood. Tudo está contra ele, todos estão contra ele, não há em quem confiar.

Qual será o próximo passo?

E, justamente esse sentimento de falência tanto da polícia quanto do Congresso Nacional, descoberto a duras penas pelo personagem de Wagner Moura, proclama o caos da atividade política e estimula ainda mais a descrença na democracia – de forma até paradoxal, já que é por conta da própria democracia que se podem fazer críticas desse gênero ao Estado. Por sorte, o tom de desesperança vivido por Nascimento é contrastado por Fraga quando este consegue dar funcionamento à CPI que derruba os então corruptos.

Ao ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais não resta muita opção se quiser mudar o país, senão unir-se com o que parecia ser seu inimigo.

Tropa de Elite 2 é um filme incisivo, petulante, desmoralizante. Mas, mesmo com toda essa audácia e com o grande apoio popular, a vingança que Padilha promoveu nas telas contra a baixa burguesia corrupta do Brasil parece não ter afetado os próprios apedrejados. Talvez porque a empatia do público com o longa nasceu da guerra que acontece nas ruas do país – e não do drama constante que se vive no Congresso. O recado ainda precisa ser mais claro. Qual será o próximo passo de Nascimento? Será ele também corrompido pelo sistema num terceiro episódio de bilheterias hollywoodianas? Apesar de insano, o convite pode ser irrecusável.

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Jornalista, Osasco, SP