Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

E a imprensa finge que não vê

No enfrentamento das forças de segurança do governo do fim de outubro para cá, o narcotráfico apenas pôs de fora um pedaço das suas unhas. Apesar de ter transformado a invasão-ocupação do Complexo do Alemão em espetáculo, a imprensa brasileira finge que não vê e deixa muitas perguntas sem respostas.

O saldo da guerra, até agora, foram mais de 200 veículos incendiados e mais de 120 pessoas presas, mais de 15 presidiários transferidos de um presídio federal para outro num processo de desarticulação das facções e o endurecimento das ações do governo do estado do Rio contra os traficantes. Além da apreensão de mais de 40 mil toneladas de maconha e 44 quilos de cocaína e mais de 200 armas e granadas.

Desta vez, as ações dos traficantes foram tão descentralizadas que deixaram as forças policiais tontas. Não fossem as forças armadas e a PM do Rio teria ido para o beleléu.

Desacostumada a grandes coberturas, a imprensa brasileira acabou deixando, ao cabo e ao termo, muitas perguntas sem respostas:

1. Por que a invasão e ocupação ao Complexo do Alemão só ocorreu dois dias depois de os bandidos serem encurralados no Morro do Cruzeiro?

2. Por que, ao invés de 2.800 homens, as três forças armadas não colocaram um mínimo de 10 mil homens para fazer a varredura de casa em casa no dia da invasão-ocupação?

3. Por que se tentou negociar a invasão-ocupação um dia antes dela acontecer?

Visita à capital do cartel de Cali

Se não fosse a presença dos blindados de logística da Marinha brasileira, a PM do Rio de Janeiro teria tomado uma lição inesquecível: ao invés de os bandidos saírem correndo de um morro para escapar noutro, teria sido o inverso: os policiais sairiam correndo para se esconder em casa ou fora do Rio, num caso em que a população clamaria por uma intervenção política do governo federal no estado. Graças a bravura dos seus homens, as forças de segurança do Rio salvaram a pele política do governador Sergio Cabral.

Na história do narcotráfico mundial, tudo relacionado ao mercado de drogas é tratado sempre à flor da pele, ou melhor, como no fio de uma navalha. Isso porque o mercado de drogas, se ainda não é o primeiro, caminha há mais de dois anos para ser o primeiro em movimentação de recursos financeiros no planeta. E o Brasil entrou definitivamente na rota internacional de drogas pesadas (heroína, cocaína) no começo da década de 1970, quando da estada e prisão no Brasil (Rio) do tesoureiro da máfia siciliana, Don Tomazo Buscetta (ver o romance-reportagem do autor, O Voo do Gafanhoto), que incluiu o país na rota do narcotráfico internacional.

Graças à expansão econômica do Brasil da década de 1970 para cá, a falta de uma contínua educação política do país, seguida de uma fuga proposital da busca de sua identidade política-cultural, o consumo de drogas tem aumentado vertiginosamente, com o espantoso crescimento do exército de traficantes. Por ser a capital cultural do país e o segundo estado em potencial econômico, com a classe média mais sólida, o Rio de Janeiro se tornou a área mais apropriada para o desenvolvimento do projeto do narcotráfico: a expansão das favelas sem infra-estrutura (falta tudo) é o ambiente propício à marginalidade, o ponto de partida do narcotráfico (vide o caso de Bogotá, na Colômbia). Cali, a capital do cartel, foi visitada há dois anos pelo governador do Rio, Sergio Cabral, que foi aprender como se faz política pública social antidroga.

Seriam os narcotraficantes de outro planeta?

O florescimento de um ambiente pró-droga no Rio de Janeiro não é de hoje nem de ontem. Mas não foi à toa a rejeição da proposta de liberalização da maconha encampada pelo candidato derrotado ao governo nas últimas eleições, Fernando Gabeira (PV). A falta de ocupação – lazer, esportes, escolas, teatro – nas favelas transformou cada criança num ‘gafanhoto’ (olheiro) dos narcotraficantes. A troco de nada (ou simples lanche, ou a dispensa do aluguel dos pais), as crianças observam o movimento de policiais nas favelas e passam a informação para as centrais do narco. Esse tipo de atividade começa cedo e vai até os 13, 15 anos, a partir de quando, já rapazes, são encaminhados para outras tarefas, até ganhar a notoriedade de um Elias Maluco, o esquartejador do repórter global Tim Lopes. Mesmo preso num presídio de segurança máxima, Maluco continua a liderar com toda pompa uma facção do narco do Rio. Ele já foi um ‘gafanhoto’, como os do livro.

O jornalismo chapa-branca da TV Globo insistiu na terça-feira (30/11) em falar no desaparecimento dos narcotraficantes e operadores do Complexo do Alemão, como se a própria origem deles não fosse a favela, o morro, como se fossem pessoas de fora lá infiltradas: a hipocrisia foi outra deformação acrescentada à cobertura jornalística chapa-branca.

Ninguém é obrigado a conhecer história, sociologia, seja de que área for. Mas os jornalistas, sejam de onde forem, inclusive os da TV Globo, têm obrigação de conhecer a história anterior dos assuntos sobre os quais falam. A impressão que se tem é de que o espetáculo em que se transformou a ocupação varreu da cabeça dos jornalistas da emissora o mínimo de memória: sob as vistas logo de quem? Renato Machado, cuja origem profissional foi no Departamento de Pesquisa do velho JB comandado pelo mestre Alberto Dines. Se depender do noticiário global, as novas gerações de profissionais da imprensa vão ficar pensando que esses narcotraficantes vieram de outro planeta.

Prejuízos serão recuperados

As imagens dos morros exibidas de segunda-feira, 22/11, a sexta, 26/11, com os traficantes e seus apoiadores portando armas e granadas, mostraram três aspectos:

** São milhares de bandidos a serviço do narcotráfico, e não apenas meia dúzia, como o governo fazia crer antes;

** A extensão das facções é bem maior do que os governos federal e estadual supõem;

** Esse é o tipo da guerra urbana para a qual o governo estadual está completamente despreparado de enfrentar (e isso se viu quando a própria TV Globo mostrava durante horas, via filmagens de helicóptero, os locais onde se concentravam os bandidos e a PM observava tudo sem fazer absolutamente nada, nem se aproximava dos locais);

A história do combate ao narcotráfico é coberta de traições, covardias, deduragens e corrupção. Essas atitudes são comuns a ponto de a famosíssima Operação Mãos Limpas (chamada), desenvolvida pela justiça italiana na década de 70 e através da qual os principais mafiosos da Sicília foram apanhados e julgados dentro da própria cadeia, onde já estavam os presidiários mafiosos – caso contrário não havia como a polícia mantê-los sob sua guarda.

Quando as forças armadas se juntaram para fazer uma grande limpeza no Complexo do Alemão, levavam a certeza de que, além da apreensão de uma grande quantidade de material bélico e de drogas, conseguiriam prender centenas de traficantes e seus operadores: como? Todos eles deixaram a favela da noite anterior para a madrugada seguinte, largando para trás todo o material de ‘trabalho’. Óbvio: alguém infiltrado nas forças do governo ‘cantou’ (dedurou) a invasão com antecedência, soando um aviso geral e, de repente, todos os criminosos sumiram da área e ninguém os viu. Daí, os comandantes da ação policial tiveram uma grande surpresa: quando inspecionaram de casa em casa – numa população superior a 400 mil moradores – não encontraram ninguém.

Mesmo assim, num gesto simbólico a polícia fixou uma bandeira do Brasil e do Rio de Janeiro no alto do Complexo do Alemão. Exclamação natural: tanta zoada para nada! Os bandidos fugiram do Alemão mas vão ressurgir em outro lugar, disso ninguém duvida. Porque os prejuízos materiais causados pela operação (armas e drogas) serão em pouco tempo recuperados. E só aguardar.

Ou foi um conselho ou foram avisados

Em sua cobertura ‘chapa branca’ (por ‘jornalismo chapa-branca’ se entende aquele tipo de cobertura onde só se divulga a versão de um lado) no dominical Fantástico (28/11), a TV Globo, após exibir como um troféu a prisão do traficante Zeu, o principal matador do repórter global Tim Lopes, admitiu que os bandidos que não fugiram ainda estavam escondidos no morro.

Como as forças armadas e a polícia do Rio não têm data para concluir a operação no Complexo do Alemão, não está descartada a hipótese de novas reações dos narcotraficantes, com novas investidas, já que nem os armamentos nem a quantidade de drogas apreendidas representam sequer a metade do arsenal do conjunto de facções do Comando Vermelho.

E agora? É o que a população pergunta. Uma aparente paz começou a reinar no Rio. Vão chegar às favelas os serviços de saúde, de educação, moradia e segurança de que a população precisa? Ou apenas predominará essa esperança de paz? Em toda grande operação, há sempre um momento de mitificação ou desmistificação.

Qual não foi a surpresa, para a maioria dos jornalistas que acompanham o noticiário sobre o assunto, quando, em menos de alguns segundos, caiu por terra a imagem de seriedade e responsabilidade do jornalista Renato Machado, apresentador do Bom Dia Brasil. Credibilidade alcançada não só pelo tempo de jornalismo profissional na grande imprensa – saiu da Pesquisa do JB, na década de 1970, diretamente para a redação e depois a apresentação do Bom Dia Brasil – como pelos seus mais de 50 sucessivos anos na atividade, Renato Machado era o supra-sumo do jornalismo brasileiro até a manhã de segunda-feira, 29/11, quando engoliu, espantado, ao dizerem na sua frente, com seu silêncio acolhedor, que a ocupação do Complexo do Alemão foi um sucesso mas que os bandidos não foram presos. Encantaram-se. O jornalismo chapa-branca imposto a Machado acabou com a seriedade dele: sequer suspeitou que os bandidos saíram do morro bem antes da invasão militar: foram dominar em outra praia.

Em casa o telespectador perguntava: que operação é essa que deixa os bandidos fugir? Ou que varredura é essa, que não encontra os bandidos?

Esperava-se que a reação mínima de Machado fosse o questionamento. Como deve ser a do bom jornalista. Das duas uma: ou os bandidos foram aconselhados – como foram – a se entregar, senão haveria – como houve – a invasão (não no dia seguinte, sábado, mas no domingo) e caíram fora do morro na mesma hora ou foram avisados pelos seus orientadores – das cadeias ou informantes da polícia – que o morro seria ocupado domingo e que não deveriam impor qualquer resistência, frustrando as forças policiais.

Consumidores não são moradores de favela

De qualquer modo, não pareceu estar na estratégia do narcotráfico o final sangrento para o confronto iniciado com o incêndio dos veículos: se a desestabilização das forças de segurança do governo ficou notabilizada com a tática da descentralização das ações, o recuo dos traficantes e operadores no momento do enfrentamento mostrou que as ações do narcotráfico são pensadas e planejadas. Portanto, frustrou o aparato de planejamento oficial.

Daí pergunta-se: o que acontecerá a seguir? As novas ações serão resultado dos investimentos governamentais a serem feitos nas áreas sociais mais vulneráveis a novas investidas do narco em qualquer parte do país. No noticiário de segunda para terça-feira houve um esforço do jornalismo chapa-branca para ‘explicar’ e ‘justificar’ o sumiço dos bandidos, como se eles tivessem se evaporado. Ora se mostra a canalização dos esgotos de um morro para outro, ora a sua diluição entre os moradores, como não se tratasse de milhares deles, e não de apenas centenas.

Só na segunda-feira (29/11), da tarde para a noite, o noticiário chapa-branca, basicamente conduzido pela TV Globo, trouxe a informação sonegada nos dias anteriores: a de que grupos de policiais haviam invadido casas comerciais no Complexo do Alemão e embolsado maços de dinheiro de comerciantes sem lhes dar qualquer satisfação. Comandos militares prometeram colocar ouvidorias nos morros para receber reclamações.

A mudança total no modo de vida de uma população oprimida pelo narcotráfico durante mais de meio século vai exigir que tanto o governo estadual como o federal modifiquem por completo seu modo de tratar as populações periféricas das grandes cidades. Se isso não acontecer, o narcotráfico normalmente se reinstalará porque uma grande parte dos consumidores de drogas está nas classes médias e altas, não se constituindo propriamente de moradores dos morros e favelas das cidades.

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Jornalista e escritor. Ex-repórter do Jornal do Brasil e da sucursal do Rio da Folha de S.Paulo. Faz palestras atualmente sobre seu recém-lançado romance-reportagem O Voo do Gafanhoto, cujos temas centrais são o narcotráfico, luta armada, amor no tempo da paz e organização social