Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo em bases de dados, ano zero

A visceral polêmica em torno das revelações dos bastidores das atividades da diplomacia dos Estados Unidos no mundo, na maioria das vezes passa ao largo do que seja o fato mais significativo: a ascensão definitiva do que definimos como ‘jornalismo digital em bases de dados’, aquela modalidade jornalística que desenvolve todas as suas etapas, desde a apuração até a circulação, utilizando unicamente as redes constituídas no ciberespaço. Há tempos, desde pelo menos a metade dos anos 1990, quando começamos a pesquisa deste tipo emergente de jornalismo, defendemos a hipótese de que o ciberjornalismo pressupõe a produção e circulação descentralizada de informações previamente armazenadas nos bancos de dados online em escala planetária.

Como até agora as empresas relacionadas com o modo de produção convencional têm relutado em compreender o potencial revolucionário do ciberespaço, utilizando o digital de modo instrumental, sem se desvincular das práticas convencionais, coube a jovens inovadores subverter a lógica predominante e contribuir para a sedimentação deste modelo paradigmático de jornalismo, encarnado pelo WikiLeaks. Na atualidade quando a imprensa convencional trabalha nos limites da censura dos governos de plantão, incluindo as chamadas matrizes do modelo de democracia ocidental, Estados Unidos e Reino Unido, ou faz coro com filtrações sem nenhum fundamento como as acusações de uso de armas químicas pelo Iraque ou de produção de armas atômicas pelo Irã, o WikiLeaks desenvolveu uma metodologia baseada em técnicas e tecnologias hacker, que usa software inteligentes para obter acesso a material secreto, censurado ou restrito com significação política, diplomática ou ética.

Ao contrário de uma certa parte da chamada imprensa convencional, muitas vezes propensa a publicar de bom grado as filtrações palacianas interessadas, o WikiLeaks, de acordo com o melhor da tradição deontológica e da prática de apuração de nomes legendários da reportagem de investigação no jornalismo, não aceita rumores ou material que já tenha sido tornado público. Antes de divulgar qualquer informação, a equipe de jornalistas do WikiLeaks atesta a veracidade dos documentos enviados e todo o material obtido fica na chamada ‘sala de espera’, para evitar a disseminação de informação que não seja verificada. Somente após o material ser compilado é que a equipe do WikiLeaks faz um resumo do que é publicado junto com os documentos que o comprovam, evitando compactuar com o modelo desprezível de jornalismo muito praticado pela imprensa convencional, que privilegia a prática preguiçosa da divulgação de material das assessorias, que pouco investigam, funciona como correia de transmissão das atividades de marketing ou propaganda e aceita sem pudores a censura oficial, como nos casos dos EUA e do Reino Unido até bem pouco tempo, com as exceções de praxe.

Imprensa convencional se adapta ao modelo

A suprema ironia neste episódio que aponta para uma contradição do sistema de produção de informações na atualidade é que a imprensa convencional – não raras vezes preguiçosa na apuração de fatos relevantes, como se comprovou neste caso – cumpriu uma função determinante para difundir este modelo de jornalismo, que corrói os fundamentos do paradigma tradicional, centralizado, oficialista e dependente, sobretudo, de métodos baseados em práticas humanas de apuração. Enquanto o senso comum pouco ilustrado concebe o processo de inovação como a substituição pura e simples de um meio pelo outro, o mundo real, como sustentado por McLuhan ou Fidler, revela que, na maioria das vezes, existe uma relação visceral entre os diferentes meios, existindo uma complexa dependência mútua entre os componentes do multifacetado ecossistema midiático contemporâneo. No ciberespaço, para ir além do oficialismo das filtrações interessadas que vão das informações fornecidas pelas celebridades de turno aos dossiês plantados pelas agências de inteligência dos governos, existe a necessidade de se desenvolverem técnicas e tecnologias capazes de burlar as barreiras de segurança e acessar os documentos armazenados nas bases de dados online. Um movimento que pode ser fatal para os fundamentos do Estado de Direito em que vivemos e para as normas deontológicas consagradas pelo jornalismo convencional.

A revelação em massa de documentos comprometedores para as autoridades de dezenas de países é a de que cabem poucas dúvidas de que se trata de um dos mais importantes processos de pré-apuração jornalística do século, por mais difícil que seja para alguns profissionais à moda antiga admitir. Não partiu, como era de se esperar na mais cândida das narrativas funcionalistas sobre a função de cão de guarda da imprensa nas sociedades democráticas, das mais prestigiadas organizações jornalísticas. Ao contrário, algumas das mais importantes publicações, como The New York Times, The Guardian, Der Spiegel, El País e Le Monde, somente acessaram as informações depois que repassadas pelo WikiLeaks.

Se continua sem utilizar ao máximo a potencialidade do meio digital para revolucionar a prática profissional – neste caso, ao menos, a imprensa convencional demonstrou compreender a lógica do processo muito mais rapidamente que os chefes de Estado envolvidos. Enquanto o governo dos Estados Unidos e de seus aliados partiu para a ofensiva, tentando inviabilizar as ações do WikiLeaks ou criminalizar o seu principal mentor, a imprensa convencional, com uma invejável capacidade de adaptação, não hesitou um minuto em se adaptar ao modelo que emerge por detrás da produção descentralizada e que funciona através do uso de tecnologias e processos impensáveis antes da criação do ciberespaço.

Repensar tecnologias e processos

Como disse antes, o caso da revelação dos arquivos secretos da diplomacia dos Estados Unidos representa a ascensão definitiva do paradigma do jornalismo digital em bases de dados, que despontou como prática na segunda metade dos anos 1990 e se afirmou como paradigma no começo deste milênio, como demonstramos em conjunto com outros autores, como Tom Koch, Raymond Colle, Xosé Pereira, Axel Bruns e Suzana Barbosa, para citar apenas alguns, em inúmeras pesquisas desenvolvidas desde 1995. Se de um lado, parece que a imprensa convencional, uma vez mais, dá sinais de grande agilidade para se adaptar às novas circunstâncias, por outro, este episódio indica como um fenômeno histórico, o jornalismo, não funciona a partir de uma essência imutável, independente das circunstâncias políticas, econômicas, culturais e, sobretudo, tecnológicas.

Na contramão das profecias das pitonisas de plantão que anunciavam o fim do jornalismo, a emergência do WikiLeaks comprova a hipótese de que o que estamos vivenciando não é o fim do jornalismo, mas sim, de uma determinada forma de jornalismo, mais ou menos como aconteceu com o modelo do jornalismo político na segunda metade do século 19.

E se esta hipótese estiver correta, como tudo indica, o futuro do jornalismo daqui para frente vai passar, ainda mais, pelas práticas descentralizadas e fundadas tecnologicamente a partir dos circuitos criados pelas relações constituídas no ciberespaço como na realidade concebida nas novelas do romancista William Gibson. Todos nós, jornalistas, pesquisadores, ativistas, empreendedores, inovadores sociais e governos, devemos assumir a responsabilidade de moldar as feições desta prática especializada, que tem muitos dos fundamentos até aqui em vigor desconstituídos pelo novo paradigma.

A necessidade de repensar as tecnologias e processos utilizados para a apuração, produção e difusão de informações, ou a legalidade e a sustentabilidade deontológica das práticas hacker para acessar informações ao mesmo tempo altamente comprometedoras para as autoridades e de grande interesse público para qualquer cidadão, é uma questão a que teremos que responder se quisermos adequar a prática do jornalismo à defesa do acesso de todos à informação sem ultrapassar os limites legais estabelecidos pelo Estado de Direito e os preceitos éticos delimitados pela deontologia profissional.

WikiLeaks cumpriu sua parte

Nesta complexa relação entre fontes, meios jornalísticos e atores sociais capazes de assumir múltiplas funções ao longo das diversas etapas de produção de informações – em vez do fim das mediações, como ingenuamente se chegou a pensar nas origens da disseminação das chamadas redes sociais –, o que se verifica é uma multiplicação dos mediadores e das instâncias de mediação. Se antes, no jornalismo convencional, todas as etapas eram centralizadas pelas empresas – daí, a existência de funções muito bem delimitadas como a de pauteiro, que tinha como missão pré-apurar as informações para checar a sua veracidade –, agora muitas destas funções são exercidas por atores desvinculados da organização jornalística que publica as informações para todos. A divisão social do trabalho que estrutura a produção de informações no jornalismo digital em bases de dados, em vez de dispensar a atividade dos jornalistas, ao contrário, cada vez mais torna a presença destes profissionais inevitável, ainda que a imprensa convencional persista teimando em não perceber.

Enquanto não se pode negar a importância do WikiLeaks dentro do que definimos como o uso pelos jornalistas do ciberespaço como fonte, por outro lado, cabe chamar a atenção, profissionalmente falando, para o fato de que em vez de divulgar os telegramas dos diplomatas dos Estados Unidos como se verdade fosse, como está fazendo, caberia à imprensa apurar com rigor as informações antes de conceder aos agentes estadunidenses a condição objetiva de jornalistas que nenhum deles tem e tampouco pode reivindicar, a julgar pelo modo como observa, avalia e comenta a realidade dos países neste escândalo de proporções imprevisíveis.

Se, como dissemos antes, ao divulgar o caso, a imprensa convencional contribuiu para a ascensão do jornalismo digital em bases de dados, ao mesmo tempo fica evidenciado que na divisão social do trabalho que predomina entre os diversos atores envolvidos na produção de informações jornalísticas na atualidade, é certo que o WikiLeaks cumpriu com muitos méritos a sua parte, mas a imprensa convencional segue firme na velha prática de apenas difundir dossiês que recebe. Mesmo que seja verdadeiro que, ao menos neste caso, teve a coragem de postar-se ao lado da cidadania e voltar as costas às determinações dos governos de turno, com todos os riscos que a decisão carrega em países acostumados a conviver com um jornalismo chapa branca.

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Jornalista e pesquisador do CNPq no Laboratório de Pesquisa Aplicada em Jornalismo Digital (Lapjor) na Universidade Federal de Santa Catarina