Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um leve abalo latino-americano

Unasul, Alba, Mercosul, Pacto Andino, Nafta. Oficialmente, a América Latina é uma sopa de letras de solidariedade, servida ao calor fraterno do Caribe à Patagônia. Agora, graças ao WikiLeaks, sabemos que não é bem assim. Entre as iguarias latinas, descobrimos que a presidente argentina, Cristina Kirchner, é ‘instável’ – nas palavras da ex-presidente chilena Michele Bachelet – e foi ‘submissa’ aos desmandos do marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, que morreu em 27 de outubro. Ele, por sua vez, segundo um ex-chefe de gabinete, não passava de um ‘psicopata’ e um ‘monstro’.

O presidente boliviano, Evo Morales, teria um grave tumor no nariz, segundo uma inconfidência do ministro da Defesa brasileiro, Nelson Jobim, à embaixada americana – Jobim e La Paz negam. Já a diplomacia brasileira seria pautada por um ‘ódio’ aos EUA. E na Venezuela ninguém escreve ao coronel Hugo Chávez, segundo uma suposta ex-amante do comandante.

Frente ao abalo mundial provocado pela divulgação de segredos do Departamento de Estado dos EUA – intrigas nucleares de Paquistão, a suposta traição da China à Coreia do Norte e milhões de dólares suspeitos enfiados na mala do vice-presidente afegão –, a parcela latino-americana no caso WikiLeaks é um mero tremor. Dos 251 mil arquivos divulgados até agora, menos de 8% se referem às Américas abaixo do Equador. O Brasil, vice-potência do hemisfério, mereceu apenas 3 mil arquivos.

Um rebelde sem causa

A julgar pelo butim digital, não houve até o momento nenhuma bomba. Sim, surpreende ouvir as indiscrições e destemperos normalmente sussurrados entre paredões. E a reação lacônica à devassa – ‘opiniões dos gringos’, segundo o presidente peruano, Alan García – pode mudar com a divulgação dos segredos sobre Colômbia e México, ambos engajados em espinhosas lutas antidrogas com farto apoio americano.

Mas ninguém se espanta ao saber que Caracas e Havana mantêm laços carnais (ou que Chávez confia mais nos arapongas de Fidel Castro do que nos próprios) nem que os avanços do Irã no continente sul-americano seriam mais embuste do que ameaça concreta. Tampouco assusta ouvir que o Itamaraty tem uma queda para a versão antiamericana do mundo. Boa parte dos segredos revelados soa como obviedades ou fofocas com um quê de ópera bufa. Washington pode ter suas razões para coletar dados ‘biométricos’, com amostras de DNA, dos políticos do Paraguai, mas nenhum espião ianque supera as bravas mães paraguaias que, sem nenhum hacker, forçaram o presidente Fernando Lugo a assumir a paternidade dos filhos concebidos no celibato.

Mesmo assim, o fundador do WikiLeaks sai como o novo herói do continente. Chávez saudou-o pela ‘coragem’ com que ‘deixou nu o império’. O chanceler do Equador ofereceu-lhe asilo. (Assange está foragido, acusado não de espionagem, mas de assédio sexual. Intriga dos imperialistas, retrucam seus devotos.) Há quem diga que esse australiano de 39 anos seja a encarnação de Daniel Ellsberg, ex-analista da CIA que vazou arquivos secretos em 1971 e abalou o governo de Richard Nixon. Não é bem assim. Para começar, a arma de Ellsberg foi o bisturi, e não o ventilador. Os ‘Papéis do Pentágono’ – quatro mil páginas – eram documentos esmiuçados por Ellsberg e sua divulgação teve proposta precisa: expor a farsa do governo que, para conduzir a Guerra do Vietnã a contento, mentia ao Congresso e aos americanos. Já Julian Assange é um rebelde sem causa, com vago reflexo anti-establishment, cujo vasto arsenal mal conhece, muito menos domina.

Bisbilhotar é refresco no porão dos outros

A parte podre do fichário de WikiLeaks acabou servindo serviu para mostrar que os amigos latino-americanos não são tão amigos assim. Mas também consola ao ilustrar que atrás das fofocas há análise nos bastidores da comunidade diplomática do hemisfério. São profissionais que não se iludem com o teatro bolivariano e tampouco com os novos caudilhos, que só têm lastro político com mordaça e força bruta.

Outro dia, Thomas Friedman perguntou na sua coluna no New York Times o que aconteceria se o dono do WikiLeaks fosse chinês. E se ele se chamasse Julio e se dedicasse a pilhar os segredos dos governantes latino-americanos? Seria ainda o herói ou acabaria na cadeia, com seu website embargado a mando da nova cartilha de ‘controle social da mídia’? Ninguém diz, mas bem que o governo do Equador, tão assíduo em enquadrar a imprensa crítica, acabou desmentindo seu chanceler e retirou o convite de asilo a Assange. Bisbilhotar é refresco nos porões dos outros.

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Correspondente da Newsweek e colunista do Estado de S. Paulo; www.brazilinfocus.com