Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Protagonistas em show de botequim

Não consigo imaginar a importância que o repórter Leonencio Nossa, do Estado de S.Paulo, terá atribuído à sua pergunta, quando, na terça-feira (30/11), no Maranhão, quis saber do presidente Lula se a sua visita ao canteiro de obras da usina hidrelétrica de Estreito era uma forma de ‘agradecer o apoio dado ao seu governo pela oligarquia Sarney’. Provavelmente, autoavaliou-se como um repórter brilhante, diferenciado, capaz de encostar qualquer entrevistado na parede, com perguntas agressivas que já carregam consigo a substância da resposta.


Enfim, formas autoritárias de entender e fazer jornalismo…


Só que, com Lula no papel de entrevistado, a agressividade posta na pergunta veio de volta na resposta, como bumerangue afiado. No uso da sua verborragia de palanque, Lula tratou o repórter como subalterno inconveniente, e lhe passou um carão humilhante. Leonencio foi chamado publicamente de jornalista que não evolui, cuja mente atrapalhada pela doença do preconceito precisa de tratamento.


A previsível reação do presidente à pergunta foi, na objetividade das palavras usadas, tão agressiva, autoritária e indelicada quanto a subjetividade desrespeitosa e marota da pergunta do jornalista. E ao se desrespeitarem reciprocamente, e de forma pública, cada um se desrespeitou a si próprio.


Preito de gratidão


O episódio merece dois comentários:


1. Os equívocos do jornalista – Também no jornalismo, perguntar não deve ser exercício de agressividade deselegante, mas de criatividade na busca do saber. E criatividade, como diria Piaget, pertence ao universo da inteligência, no qual não cabem nem a arrogância autoritária nem a prioridade do estrelismo nas formas de dizer. No bom jornalismo, ao se perguntar, o conteúdo essencial tem de vir na resposta, não na pergunta. Ora, ficou evidente que aquele pergunta do repórter foi pensada e feita não para elucidar, mas para ser manchete no dia seguinte – e assim aconteceu.


É perfeitamente legítimo que, ao impor intenções ao seu trabalho de narrador crítico e independente, o enviado do Estadão a Estreito quisesse dar evidência às incoerências ideológicas e discursivas de um governante que se diz de esquerda, mas que usa como estaca de sustentação política do seu governo, no Congresso, o apoio de uma poderosa oligarquia conservadora. E o mais grave, nessa incoerência: o líder que dá nome à oligarquia (José Sarney), agora tão exaltado por Lula, foi, em idos tempos, pelo mesmo Lula, chamado de ladrão sem vergonha – com todas as letras e plena ressonância nacional.


Ou seja: dado o modo como foi feita, a pergunta não serviu para elucidar a questão proposta (se aquela era ou não uma viagem de agradecimento ao apoio dos Sarney). Repórter com anos de experiência na cobertura do Planalto, Leonencio já sabia que o resultado seria esse mesmo. Com aquele pergunta, jamais chegaria à elucidação. Mas conseguiu o que verdadeiramente queria: ser manchete no dia seguinte.


Se Leonencio Nossa quisesse mesmo revelar aos leitores do seu jornal o quanto a viagem de Lula a Estreito era um tributo de pública gratidão aos Sarney, bastaria observar, ouvir e relatar o dito e o não dito naquela cerimônia artificialmente festiva.


Liturgia do cargo


2. Os equívocos do presidente – É lamentável que o presidente da República, após oito anos de mandato, ainda não saiba ou não queira usar as razões da inteligência (que não lhe falta) quando se depara com provocações de jornalistas que estão mais a fim de ser protagonistas do que narradores. No episódio de Estreito, mais uma vez por falta de tino e estopim, o principal mandatário da nação baixou a fala presidencial a níveis de botequim, achincalhando valores simbólicos do cargo que ocupa.


Ora, em vez de dar asas e peso de manchete à provocação do jornalista – o que aconteceu ao se deixar envolver num bate-boca de arquibancada – o presidente da República poderia simplesmente ter rejeitado a pergunta, em nome da respeitabilidade devida do cargo que ocupa. Sem esquecer que, quando fala a jornalistas, não são eles os seus principais interlocutores, mas os cidadãos da nação a que preside.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo