Há dez anos, a antropóloga Regina Novaes constatou, em pesquisa, que os protestantes atraíam jovens das favelas como meio de fuga do recrutamento dos traficantes. Na época, a pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) declarou que ‘a fé evangélica é tão forte que não pode mais ser desconsiderada em assuntos ligados ao combate à criminalidade e à segurança pública’. O que parece é que, nesse meio tempo, o enfoque mudou. Se nos baseássemos, hoje, nessa premissa, e a contar pelo número de igrejas neopentecostais que existem no Complexo do Alemão – e em todo o estado –, o Rio de Janeiro seria um paraíso.
Se as conversões que acontecem diariamente nos presídios e cadeias realmente tirassem bandidos da vida do crime, não teríamos visto centenas de homens, fortemente armados, saindo da Vila Cruzeiro (na última quinta-feira, 25/11) para se esconderem nas favelas vizinhas. Uma foto – anterior à ocupação do Complexo da Penha pela polícia – mostra alguns bandidos, com fuzis, diante de um paredão onde se lia ‘Deus está no controle’. A questão é que, se alguém tinha dúvida sobre o controle social exercido pelas igrejas eletrônicas, através da recuperação de bandidos pela conversão ou como opção dos jovens ao recrutamento do tráfico, está ainda mais confuso.
E as respostas parecem ficar mais difíceis. Em 2008, enquanto o mesmo jornal O Globo revelava que Marcinho VP – um dos chefões da facção criminosa que aterrorizou a população do Rio de Janeiro, nos últimos dias – é uma ovelha do rebanho neopentecostal, outros informativos noticiavam a perseguição de traficantes aos adeptos de outras religiões nas comunidades onde impunham seus domínios. A imprensa fluminense revelou casos de pessoas que precisavam esconder sua crença (na maioria, de origem afro) para poder continuar em suas casas.
A prática ‘evangélica’ dos bandidos
Foi também neste ano, que o correspondente no Brasil do The Guardian (jornalão inglês), Tom Phillips, anunciava que ‘esses traficantes evangélicos pintam suas comunidades com passagens da Bíblia e tatuam salmos em seus corpos, mas se calam quando são perguntados sobre o Quinto Mandamento (não matarás). Esses homens queimam seus inimigos em cemitérios improvisados ou cortam os seus órgãos com machados’. A matéria trazia dados da ONG Observatório de Favelas e referia-se a possíveis mortes que aconteceriam no Rio até a Olimpíada de 2016.
O tema é tão complexo que Phillips passou quatro anos pesquisando a suposta conversão de bandidos no Rio de Janeiro. O resultado deste trabalho está no elogiadíssimo Dancing with the devil, the movie (em português, Dançando com o diabo, o filme), produzido pelo jornalista. O título, segundo ele, é uma expressão utilizada por um de seus personagens. A obra chegou a ser indicada para o Silverdoc, um dos maiores festivais de cinema dos Estados Unidos, e para o Grierson Award, que é o prêmio mais importante do Reino Unido. O filme tem três personagens centrais: um traficante, um pastor e um policial. E a ideia é mostrar o paradoxo existente entre a prática ‘evangélica’ dos bandidos, que muitas vezes até pintam frases bíblicas em fuzis.
Um fenômeno a ser estudado
Como um bom inglês, Phillips não revela se possui orientação religiosa. ‘É muito pessoal’, desconversa. Mas acredita que o fenômeno dos traficantes evangélicos deveria ser estudado. ‘O meu filme não é político. É apenas um retrato. Não se coloca nem contra nem a favor de ninguém. Apenas mostra as falas, as vidas e as realidades das pessoas. Não saberia dizer se é bom ou mau’, afirma. O que intriga é como alguém, que mora no Brasil há sete anos, enxergou um conflito pouquíssimo observado por aqui? ‘Os gringos têm muito mais acesso. Nas comunidades, a gente não chega com as mesmas ideias de quem é criado aqui. E as pessoas (moradores, pastores e traficantes) não têm medo de nós’, revela.
Pode até ser. Mas o que importa é que, no final das contas, tanto a antropóloga quanto o jornalista continuam tendo razão. A fé evangélica não pode mais ser desconsiderada em assuntos ligados à segurança pública. E este é um fenômeno que precisa, cada vez mais, ser estudado.
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Jornalista