Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Poderes em conflito

Como são vistas, na perspectiva do Palácio do Planalto, as relações entre o governo e a imprensa? É uma questão tão velha quanto a própria imprensa. Ambos vivem, necessariamente, em permanente conflito. Todos os governos se sentem injustiçados pela imprensa e esta sempre acha que os governos sonegam informações que deveriam ser de conhecimento público.

O jornal The Times foi o primeiro a registrar essa situação antagônica ao escrever, há mais de um século e meio, que ‘os propósitos e obrigações dos dois poderes – governo e imprensa – estão separados, são geralmente independentes e às vezes diametralmente opostos. A dignidade e a liberdade da imprensa ficam afetadas no momento em que ela aceita uma posição ancilar. Para desempenhar suas obrigações com inteira independência (…), a imprensa não pode entrar em aliança com os governantes do dia nem pode ceder seus interesses permanentes às conveniências do poder efêmero de qualquer governo’. No entanto, esses dois poderes dependem um do outro e precisam conviver num equilíbrio que é difícil e instável.

No Planalto com a Imprensa mostra, mas não pretende analisar, esse relacionamento conflituoso. Editado em dois volumes pela Secretaria de Comunicação da Presidência da República, reúne uma série de entrevistas, sem comentários, com porta-vozes e secretários de Imprensa do governo federal desde os anos 1950, mas que foram publicadas vários anos depois do último depoimento. A obra foi organizada por André Singer; Mário Hélio Gomes, que preparou as notas explicativas de rodapé; Carlos Villanova, coordenador do trabalho de pesquisa; e Jorge Duarte, que realizou as entrevistas.

Como os entrevistados tiveram ocasião de rever suas declarações e fazer alterações, cortes e acréscimos, é possível perceber, em alguns casos, falta de espontaneidade e, em outros, depoimentos que parecem ensaios. A obra dá atenção, talvez excessiva, aos mecanismos burocráticos internos do Palácio do Planalto, mas não faltam depoimentos variados, polêmicos e contraditórios. É um material precioso e insubstituível para quem pretenda estudar alguns aspectos recentes da relação entre a imprensa e o poder no Brasil. Muito rico em informações que devem ser analisadas criticamente.

Crise militar

Talvez o episódio mais curioso seja o contado por Autran Dourado, secretário de Imprensa de Juscelino Kubitschek (1956-1960). Revela como foi escondida, durante quase um mês, a notícia de um enfarte do presidente. Dourado, numa ocasião, fingiu ser Juscelino ao entrar num helicóptero com o chapéu dele. Outro assessor falsificava a assinatura do presidente. Dificilmente este foi um caso único no Planalto durante mais de meio século. Mas não foi perguntado a nenhum outro entrevistado se ele omitiu ou escondeu da imprensa – e da sociedade – algum episódio igualmente grave.

O livro deixa claro que, seja qual for a estrutura burocrática montada no Palácio do Planalto, o relacionamento com a imprensa depende exclusivamente da atitude do presidente da República. Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, que antes de ser eleito era muito acessível à imprensa, ficou mais reservado no Planalto. Segundo seus assessores, era muito difícil colocar a imprensa na agenda. Seu primeiro porta-voz, André Singer, um dos organizadores da obra, diz que o governo Lula não dava um briefing‘diário aos jornalistas porque o presidente tinha comunicação direta com a população. Ricardo Kotscho, primeiro secretário de Imprensa de Lula, diz que o presidente achava que fazendo cinco discursos por dia não precisava dar entrevistas. O governo, no começo, nunca teve uma política de comunicação, diz Kotscho; faltava identidade de pensamento entre as diversas áreas. Uma vez por mês, Lula chamava todo mundo e dizia que a área de comunicação não funcionava.

Antônio Frota Neto comenta que a comunicação no governo de José Sarney (1985-1990) era pouco orgânica, descoordenada e despolarizada, com cinco ou seis fontes de informação. O filé das informações ficava com o presidente, que falava diretamente com os colunistas. Outro assessor, Carlos Henrique Santos, afirma que Sarney ajudou mais a comunicação do que a comunicação ajudou a Sarney.

Quase todos os entrevistados lamentam, como se viu no caso de Lula, a dificuldade de convencer o presidente a falar com a imprensa. No entanto, Carlos Átila, secretário de imprensa de João Figueiredo (1979-1985), diz que não iria pedir ao presidente que concedesse entrevistas só para agradar ao Comitê de Imprensa. Não lhe ocorreu que o presidente dá entrevistas não para agradar aos jornalistas, mas para informar a sociedade.

Fernando César Mesquita, secretário de Comunicação Social de Sarney, narra casos em que jornalistas não respeitaram a confidencialidade das fontes e publicaram informações dadas off the record e até com o nome do entrevistado. Mas Fábio Kerche diz que no governo Lula nunca foi publicado o que se pediu para não ser publicado. O diplomata Georges Lamazière, assessor de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), afirma que nunca houve, de sua parte, nenhuma queixa de que os jornalistas tivessem deturpado suas declarações: ‘Tudo que eu disse saiu direitinho (…) Não tentei enganar ninguém’. Às vezes ele jantava ou tomava café com jornalistas e desabafava. Certamente, isso pode ser considerado uma imprudência, mas diz que ‘nunca ninguém me fez a deslealdade de publicar algo’. Outro assessor de FHC, Alexandre Parola, teve a mesma experiência e não se lembra de nenhum caso em que algo que ele ou Lamazière tivessem dito que fosse grosseiramente mal interpretado, muito menos com má fé; nunca detectou má vontade.

Quase todos os secretários de Imprensa e porta-vozes do Planalto eram jornalistas. Mas na opinião de Sérgio Amaral, ministro da Comunicação Social de FHC e diplomata de carreira, o porta-voz não deve ser jornalista, pois o jornalista tem um compromisso com a classe, com os colegas, e o porta-voz, não sendo jornalista, se sente absolutamente isento e direto nessa relação. Kotscho concorda em que o cargo é mais adequado para um relações-públicas ou um diplomata: ‘Para mim, não é. Por natureza, sou repórter’.

Cláudio Humberto, ao assumir a Secretaria de Imprensa de Fernando Collor (1990-1992), encontrou um grande número de funcionários sem função e que nunca apareciam. Havia mais de cem pessoas, ficou com uma dúzia. Isso gerou uma pequena crise militar, porque havia mulheres, filhas, aderentes e até amantes de militares. Observa também que ‘alguns coleguinhas, sobretudo os de esquerda, adoram um emprego público’.

Pouca habilidade

Como os assessores perceberam a imprensa depois de passar pelo Planalto? Para Ricardo Kotscho, o jornalismo de Brasília está desconectado da vida brasileira. Carlos Chagas, secretário de Imprensa do presidente Costa e Silva (1967-1969), diz que sua percepção não mudou, assim como não mudou sua compreensão do que é o poder, mas, conhecendo o lado de lá, percebeu que as coisas não são branco e preto, não há maniqueismo.

Antônio Carlos Drumond, secretário de imprensa de Sarney, acha que os jornalistas só sabem 30% do que ocorre no governo porque não têm acesso à informação que imaginam que têm. Segundo Parola, a cobertura da imprensa fornece um retrato insuficiente dos fatos. Ricardo Kotscho observa que há uma diferença entre o que a imprensa mostra e o que, de fato, é o poder. Às vezes, ele ficava espantado porque via o que acontecia e lia algo completamente diferente. Fábio Kerche diz que várias vezes viajou com o presidente Lula, lia as matérias nos jornais e não reconhecia a viagem de que fez parte.

André Singer afirma que, depois da experiência como porta-voz de Lula, agiria de outra forma; teria mais cuidado com a apuração, checaria melhor as informações. Fernando Cesar Mesquita diz que hoje não teria falado tanta ‘bobagem’ nem teria brigado tanto.

Cláudio Humberto diz que não conheceu um jornalista desonesto, mas encontrou leviandades; as redações, majoritariamente petistas, sentiram-se derrotadas com a eleição de Collor. Em certa ocasião, Collor ainda candidato e ele foram recebidos no aeroporto por um ‘corredor polonês’ de repórteres cantando ‘Lula lá’. Não fizeram uma única pergunta. Mas reconhece que esses casos foram episódicos.

Para Etevaldo Dias, a imprensa estava certa em denunciar a corrupção, que ficava próxima do gabinete presidencial, mas depois perdeu o controle e publicava coisas totalmente infundadas. Fazia acusações sem ouvir o acusado e houve um vale tudo na imprensa contra Collor. No entanto, raras foram as autocríticas dos jornalistas pelos excessos cometidos.

Ricardo Kotscho também reclama do tratamento dado pela imprensa a Lula. Segundo ele, no começo, os jornalistas não tiveram boa-vontade para com o governo; depois, a situação piorou. Fábio Kerche também se queixa. Afirma, por exemplo, que a história do ‘mensalão’ é falsa. Para André Singer, alguns veículos não mantiveram o equilíbrio durante a crise política, ao fazer uma cobertura mais agressiva que a habitual.

Os entrevistados foram cuidadosos em falar bem de seus colegas de trabalho. Said Farhat, porém, foi criticado de maneira contundente. Farhat, ministro da Secretaria de Comunicação do presidente João Figueiredo, atribuiu sua queda a um discurso que escreveu sugerindo a volta dos militares aos quartéis e disse que recusou uma embaixada como compensação. Mas outros depoimentos dão motivos diferentes para a saída. Marco Antônio Kraemer, secretário de imprensa na época, disse que Farhat caiu por ter montado uma estrutura superdimensionada na Secretaria, e que sua queda começou quando ele quis definir os rumos do governo: ‘Foi a ruína dele’.

Carlos Átila também diz que, além da estrutura gigantesca, Farhat saiu por querer intrometer-se em questões de mérito do governo e pela sua estratégia de comunicação e de formação da imagem de Figueiredo, que não funcionou. Errou na tática, ao achar que Figueiredo era um produto. Também tinha ambições de poder, pensou que ia dar a linha do governo e se transformou num problema. Para amenizar a demissão, foi-lhe oferecida uma embaixada no exterior, que recusou e tentou, mais tarde, reconsiderar, o que levou o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil, a dizer: ‘Cavalo encilhado só passa uma vez. Negou? Agora é tarde’.

Alexandre Garcia disse que Farhat o demitiu da secretaria de Imprensa por uma entrevista cujo título era ‘O porta-voz da abertura’. Mas tanto Said Farhat como Kraemer disseram que Garcia saiu por causa de uma fotografia publicada na revista Ele & Ela para ilustrar uma entrevista na qual falou também sobre seus hábitos sexuais. Segundo Garcia, quem o encorajou foi Golbery: ‘Dá a entrevista, porque a gente está querendo tirar o Turquinho (Farhat) e convidar você para ser secretário de Imprensa’. A foto, diz ele, foi usada por Farhat e pelo general Otávio Aguiar de Medeiros, chefe da Casa Militar, para tirá-lo do cargo. Garcia deixa patente que havia um antagonismo entre Farhat e ele, o que foi confirmado por Kraemer. Desde o começo, quando recebeu o convite, Garcia pensou: ‘Esse Farhat não é confiável’. Mais tarde, Farhat o proibiu de entrar em sua sala.

Átila também ficou com má impressão de Farhat, logo no primeiro encontro: ‘Não gostei. (…) muito pretensioso, muito dono da verdade’. Alguns dias depois, ele reforçou essa impressão e sentiu-se tratado por Farhat ‘como se fosse um picareta em busca de vantagens’.

Átila também conta que, durante a ditadura, José Sarney, líder do partido do governo, o PDS, se opôs, junto com os ministros militares, a que Figueiredo, em meio a uma crise política, aceitasse a solidariedade de Ulysses Guimarães, líder do PMDB, o partido da oposição. O PDS, diz Átila, fazia um bloqueio sistemático, para que o presidente não tivesse contato com a oposição; não queria que houvesse um diálogo com a oposição. Figueiredo, com pouca habilidade política, aceitou ser presidente de honra do PDS, mas depois ‘foi abandonado [pelo PDS] na estrada, sem pai nem mãe, com um carro de pneu furado e tanque vazio’. Segundo Átila, Figueiredo estava convencido de que, se houvesse eleição direta em 1984, ganharia Leonel Brizola. Portanto, tinha que ser indireta.

A cadeira

Alguns secretários de Imprensa mudaram o rumo de suas carreiras ao deixar o Planalto. Heráclito Salles (com Costa e Silva) e José Wamberto (com Castello Branco, 1964-1967), jornalistas, e Carlos Átila, diplomata, foram nomeados ministros do Tribunal de Contas, ‘um lugar para encostar pessoas de quem o presidente gostava’, segundo Chagas. Kraemer foi para a presidência da Empresa Brasileira de Notícias, da qual já era funcionário. Garcia diz que Figueiredo deu à Manchete a concessão da televisão quando soube que ele seria diretor da emissora. Fernando César Mesquita foi governador de Fernando de Noronha, presidente do Ibama, secretário de Comunicação Social do Senado.

Para outros, o cargo representou um sacrifício econômico, pois tiveram uma redução de vencimentos. Kraemer diz que, apesar da promessa de que numa reforma administrativa então em curso seu salário seria reajustado, foi avisado de que seu cargo não seria reclassificado porque um secretário de Imprensa não podia ganhar mais do que um major. Kotscho foi para o governo ganhando um terço do que recebia na Folha de S.Paulo. Como o salário de porta-voz era baixo, o Jornal do Brasil ofereceu a Etevaldo Dias continuar pagando seu salário, mas ele recusou; só aceitou ser demitido, para receber a indenização.

Alguns fatos narrados divergem de versões divulgadas anteriormente. Numa entrevista dada à Folha de S.Paulo, Odylo Costa, filho, já falecido, contou que o presidente Café Filho (1954-1955), de quem fora secretário de Imprensa, ‘andando comigo pelo jardim do Catete, me dizia: ‘Se quiserem, me deponham, mas eu entregarei o governo a Juscelino’’.

Carlos Chagas, secretário de imprensa de Costa e Silva, tem uma versão diferente, passada pelo próprio JK. Ainda candidato à Presidência, ele foi falar a respeito do preço do café, que preocupava os cafeicultores mineiros, com Café Filho. Este, depois de pedir a Juscelino que sentasse na cadeira presidencial, disse: ‘Esta foi a primeira e única vez que você sentou na cadeira de presidente da República, porque está aqui o manifesto dos três ministros militares contra a sua candidatura’. Ao descer à Sala de Imprensa, foi perguntado a Juscelino se tinha resolvido a questão do café. Sua resposta: ‘Qual é o café de que você está falando, meu filho? O vegetal ou o animal?’

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Jornalista, autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo, está preparando um estudo sobre os jornais brasileiros