Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A mídia e a filantropia





O Observatório da Imprensa exibido na
terça-feira (14/12) pela TV Brasil discutiu o papel da mídia no estímulo à
atividade filantrópica. Responsáveis pela visibilidade das ações de caridade e
pela mobilização da sociedade para as causas humanitárias, os meios de
comunicação são parte importante do processo. No início do ano, dois desastres
naturais mostraram a força da imprensa para a articulação dos diversos atores
sociais: o terremoto do Haiti, ocorrido em janeiro, e as enchentes e
deslizamento de terra provocados por fortes chuvas, no Rio de Janeiro, quatro meses



depois. Das pequenas doações individuais às altas somas do mundo corporativo, as
dez maiores entidades do mundo do setor são responsáveis por gerenciar 155
bilhões de dólares. Enquanto no Brasil os impostos, a pesada burocracia e a
pouca transparência na administração dos recursos desestimulam os doadores, nos
Estados Unidos isenções fiscais concedidas pelos governos contribuem para o
crescimento das entidades filantrópicas.

Para debater este tema, Alberto Dines recebeu três convidados no estúdio do
Rio de Janeiro. Joaquim Falcão, doutor em Educação pela Université de Genève, é
diretor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
e vice-presidente do Instituto Itaú Cultural. Trabalhou nas fundações Joaquim
Nabuco e Roberto Marinho. Ana Toni, economista, é diretora do escritório
brasileiro da Fundação Ford e responsável pelo programa de Governo e Sociedade
Civil, que tem atuado nos mecanismos de participação democrática e na redução
das desigualdades. Antropólogo e PHD em História do Pensamento Social, Rubem
Cesar é diretor executivo e um dos fundadores do Viva Rio. Desde 2007, quando o
Viva Rio implementou o programa Honra e Respeito pelo Haiti, em Porto Príncipe,
está à frente dos projetos que promovem a reabilitação urbana, a segurança e os
direitos humanos naquele país.


Antes do debate no estúdio, em editorial, Dines destacou que a filantropia,
no passado, confundia-se com esmola. Era reservada aos ricos e aos vaidosos.
Hoje, o filantropo ‘é um misto de estadista, militante, visionário, missionário’
que não apenas se doa, mas ‘entrega-se a uma causa’. Ressaltou que a mobilização
dos meios de comunicação é imprescindível para o Brasil avançar no ranking
internacional de caridade.


O peso dos impostos


O Observatório exibiu uma reportagem com a opinião de diversos
especialistas em filantropia. Yacoff Sarkovas, executivo da Edelman-Significa,
explicou que nos Estados Unidos, em determinadas situações, não é necessário
pagar imposto pela doação. ‘Se eu tenho US$ 100 e gasto em um restaurante, eu
não vou poder deduzir aquela nota do meu imposto de renda. Provavelmente,
indiretamente, vou pagar imposto de renda por aquele gasto. Se eu pego estes US$
100 e dôo para o Metropolitan Museum of Art ou para uma associação que ajuda
crianças na África, aquele recibo eu lanço no meu imposto e não vou pagar
imposto por aqueles US$ 100. Mas eles saíram do meu bolso. Então, benefício
fiscal nos Estados Unidos, como em qualquer lugar do mundo, é você não pagar
imposto por aquilo que você doou’, disse.


Na avaliação de Sarkovas é preciso reavaliar a legislação brasileira aplicada
à filantropia. ‘O Brasil, este país pitoresco, criou a doação feita com dinheiro
público. Então, essas leis de incentivo, por exemplo, à cultura [Lei do
Audiovisual, Lei Rouanet
], elas são uma invenção made in Brazil, e
dão direito ao indivíduo de doar dinheiro do Estado para uma instituição social
ou cultural’, criticou. Leis como essas inibem o desenvolvimento da cultura de
doação no Brasil e distorcem a cultura de filantropia porque criam a idéia de
que o cidadão só deve doar quando o dinheiro não é dele. ‘A gente precisa
desenvolver uma percepção contrária a isso: ‘o que eu ganho pondo o meu próprio
dinheiro em uma causa em que eu acredito?’’, sugeriu.


A quantidade e a qualidade das informações sobre filantropia têm melhorado
gradativamente no Brasil, na opinião de Sarkovas. ‘É um tema que vem mobilizando
a mídia e isso cria um círculo virtuoso. Acho que a mídia abre esse espaço
porque é um tema que cada vez mais interessa à sociedade’, avaliou.
Constantemente surgem seções dedicadas à temática da responsabilidade social e
da sustentabilidade nos jornais impressos. Outra mostra do crescimento dessas
pautas na imprensa é a publicação de cadernos especiais. Na mídia eletrônica,
emissoras de rádio passaram a contratar comentaristas fixos para analisar
diariamente o panorama.


Solidariedade à moda brasileira


Para Beto Ferreira, diretor-executivo do Afroreggae, o povo brasileiro é
solidário. ‘O que falta, efetivamente – e as campanhas de ONGs, institutos e
televisões estimulam esse tipo de iniciativa – é o canal. Onde identificar para
quem doar e qual é o resultado disso.’ Beto sublinhou que o modelo de
investimento social privado do Brasil é um dos melhores do mundo porque o
empresário, a comunidade e o governo trabalham juntos e estabelecem metas e
métricas. Em outros países, não é possível verificar uma preocupação grande com
o acompanhamento das ações. A mídia, na opinião de Oded Grajew,
coordenador-geral da Rede Nossa São Paulo, denuncia de forma correta casos em
que a filantropia está sendo usada inadequadamente – a chamada ‘pilantropia’ –,
mas não dá a visibilidade necessária a quem faz a filantropia ‘para valer’.


Leona Forman, presidente da Brazil Foundation, comparou o volume das doações
no Brasil e nos Estados Undidos, onde vive: ‘Aqui, os fundos estão secando,
enquanto no Brasil estamos com uma pujança, um crescimento e um interesse enorme
pelo investimento social’, disse. De Nova York, Lucas Mendes chamou a atenção
para o fato de que, na hora de dividir dinheiro e tempo com estranhos, o país
mais rico do mundo aparece em quinto lugar, apesar de ser o campeão em doações
individuais. ‘Desde a recessão que começou em 2007 e a crise de 2008, houve uma
queda de 10% a 30 % das doações americanas para igrejas e ONGs sociais e na área
de saúde’, contou o jornalista. A correspondente Deborah Berlink, baseada em
Paris, destacou que os franceses, no discurso, são rápidos em criticar o
capitalismo selvagem, mas que alguns investidores estão pregando uma espécie de
‘capitalismo solidário’.


No debate no estúdio, Ana Toni comentou que no Brasil e em outros países a
filantropia e as organizações da sociedade civil estão sendo percebidas como
peças fundamentais para a consolidação da democracia. Sem minimizar o papel do
governo, a representante da Ford Foundation destacou que o momento é de unir
forças. ‘A filantropia vem para mostrar que há também os atores sociais
individuais, as instituições da sociedade civil que trabalham junto do governo –
ou monitorando o governo – ou com os parlamentares – ou monitorando os
parlamentares – neste processo democrático’, assegurou.


A escolha dos mais ricos


Dines destacou que no mundo desenvolvido o governo cria incentivos para que
as pessoas doem recursos – além de tempo, dedicação e energia. Cada país, na
opinião de Joaquim Falcão, tem o seu ‘estilo’ de doar. Na lista das doze nações
que mais doam, os países anglo-saxões ocupam dez posições. ‘Realmente, eles têm
uma cultura e incentivos fiscais’, disse. Donos de grandes fortunas nos Estados
Unidos, com Bill Gates, da Microsoft, contam com o incentivo fiscal, mas também
com altos impostos sobre a herança. ‘Doar, para eles, é uma maneira de ficarem
com o controle de recursos expressivos que, do contrário, iriam ser aplicados
pelo Estado’, disse. É uma maneira de perpetuar o espírito público naquilo que
eles querem.


Apesar de não ter incentivos fiscais, no Brasil há a cultura da doação, na
visão de Falcão. Iniciativas como a das Santas Casas de Misericórdia e das
Beneficiências – que respondem a cerca de 30% dos atendimentos do Sistema Único
de Saúde (SUS) – mostram que ao longo da história o povo brasileiro cultivou a
cultura de ajudar o próximo. ‘Isto é a cultura portuguesa e espanhola. É
diferente da cultura do grande empresário’, afirmou. Para Falcão, mesmo o modelo
brasileiro pode contar com incentivo fiscal para atrair mais doações.


A maior parte do investimento social nos países anglo-saxões, ressaltou Rubem
Cesar, não é proveniente das grandes fortunas, mas sim dos indivíduos: ‘Aquele
dinheirinho de cada um’. O sociólogo contou que uma vez recebeu por correio a
doação de um dólar de um americano. ‘Pensei que fosse provocação’, relembrou. A
doação de pequenas quantidades é uma prática nos Estados Unidos porque há a
consciência de que a soma destes valores ganha grandes dimensões.


‘O Brasil tem a cultura de doação, sim, muito forte, mas na tradição
católica, lusitana, ibérica. A gente esconde o dinheiro dentro da bolsa
católica, você não mostra’, comentou Cesar. Quando se pensa em estimular a
doação individual no Brasil, a Receita Federal ‘proíbe’. É na dificuldade de
inserir a participação individual de forma definitiva que as corporações ganham
um papel destacado nesse cenário.


Filantropia de longo prazo


Ana Toni comentou que a mídia deve tratar de todos os lados da filantropia de
forma crítica e sofisticada. É preciso ressaltar que os resultados das ações
sociais podem não ser imediatos, como saciar a fome de uma criança carente
próxima ou abrir uma creche popular. ‘Tem uma filantropia que é diferente desta,
que é criar instituições, apoiar a criação de um CPDOC, de uma Fundação Carlos
Chagas, das Santas Casas. Essa filantropia aparece muito pouco na mídia’, disse.


A representante da Fundação Ford criticou a falta de um debate que mostre que
filantropia quer dizer, muitas vezes, projetos de longa duração e altamente
profissionalizados. ‘A filantropia é colocada como a vilã, a que usa mal o
dinheiro. Logicamente, há boas e más [entidades] filantrópicas, bons e
maus governos, boas e más empresas’, sublinhou. A atividade não é só ficar
‘distribuindo dinheiro’. Por trás do trabalho das entidades sérias, há
profissionais que analisam de forma técnica os projetos que serão atendidos.


***


A ação cidadã


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na
TV nº 576, exibido em 14/12/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Durante séculos esperava-se que o Todo Poderoso resolvesse todos os problemas
da humanidade. Com o fortalecimento do Estado, os governantes tornaram-se
semideuses prometendo a felicidade para os governados. E o que fazem os homens
por seus semelhantes? Quem se candidata a amigo do homem?


Filantropia significa exatamente isso. Filos, amizade,
antropos, homem. Mas até recentemente filantropia confundia-se com
caridade, esmola, piedade, misericórdia. Hoje, o filantropo é um misto de
estadista, militante, visionário, missionário. Ele não doa apenas dinheiro, ele
se doa, entrega-se a uma causa. O filantropo é um operador social que goza de
mais liberdade e tem mais autoridade do que uma autoridade. Sua obrigação é
atender a sua consciência como ser humano.


A filantropia já foi reservada aos ricos, aos famosos. Aos vaidosos e aos
arrogantes. Milionários sossegavam suas culpas oferecendo doações, astros do
show business e dos esportes mostravam que tinham alma comprando
simpatias das multidões de fãs.


A filantropia começa a ser encarada como responsabilidade social, como ação
cidadã, e deixou a esfera dos privilegiados pela fortuna. Qualquer ser humano é
um filantropo em potencial, basta que seja motivado para a generosidade. Se não
tem recursos financeiros para partilhar pode compartilhar o seu tempo – e aqui a
mídia desempenha uma papel crucial. O Grupo Globo destaca-se não apenas como
doador mas, sobretudo, como estimulador. Mas falta muito. Sem a mobilização dos
meios de comunicação, o Brasil não conseguirá sair do septuagésimo sexto lugar
abaixo da média mundial. O brasileiro doa menos do que o guatemalteco, menos do
que o guianense, o colombiano e o boliviano.


Alguma coisa está errada quando uma sociedade mantém-se fechada, insensível,
incapaz de abrir-se para a humanidade. Cordialidade apenas não resolve.