Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Usuário financia o tráfico?

Numa passagem bíblica, diante dos lapidadores de Maria de Magdala, Jesus se abaixa e começa a riscar o chão com o dedo e escreve: hipócritas. Será que hoje ele faria o mesmo?

A retomada do Complexo de favelas do Alemão no Rio de Janeiro foi algo cinematográfico. Uma ação conjunta entre polícias, Exército e Marinha para libertar os moradores do controle dos traficantes. Na verdade, uma resposta à ousadia dos bandidos. Cenas impressionantes foram transmitidas ao vivo por toda a grande mídia. Foram incineradas 40 toneladas de drogas, mais de 300 armas de grosso calibre foram apreendidas, 200 motos recuperadas, veículos, casas de luxo foram tomadas e ainda assim teve muita gente insatisfeita.

Na internet, encontramos pessoas afirmando que tudo não passou de ‘pão e circo’ para o mundo se sentir seguro na Copa de 2014. Outros afirmaram que nada irá resolver. Afinal, quando a polícia sair, os traficantes voltarão, mesmo com as UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora). Jornais deram ênfase à fuga de bandidos em carros da Polícia Civil carioca. Para o ‘analista político’ Reinaldo Azevedo, da Veja (tinha que ser), não houve resistência porque a polícia fez acordo com traficantes. Ou seja, Lula (para Veja, é sempre ele) deve ter manipulado tudo para finalizar o mandato com um grande espetáculo pirotécnico ‘para inglês ver’. Mas, pensemos, bandido é mau, mas não é burro. Enfrentar todo aquele aparato policial seria suicídio coletivo.

Porém, o que chama atenção nas manchetes é a ‘satanização’ dos traficantes e a complacência velada com os usuários de drogas, ou melhor, dependentes químicos. Em marketing, aprendemos: só há oferta se há demanda. Como a grande mídia tocou nesse assunto apenas de forma en passant, resolvi tecer alguns comentários sobre o tema.

Depois, é só chamar o coronel Nascimento

O humorístico CQC fez uma ‘pesquisa’ entre artistas, jornalistas e políticos para saber a opinião deles sobre a legalização das drogas e a possível existência de culpabilidade do usuário. Coincidentemente, ninguém atribuiu culpa aos viciados e quase todos, exceção do deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ), afirmaram ser contra a criminalização dos usuários. Logicamente, o nobre deputado arredio sofreu com as vinhetinhas engraçadas do programa. O resultado da pesquisa foi tão previsível quanto as respostas do sociólogo holandês sobre a liberação da cannabis ativas. Se a intenção era fazer uma matéria séria, no Documento da Semana, não convenceu. Passou apenas como mais uma piada sem graça do CQC. Foi como perguntar a um alcoólatra se a cachaça faz mal. Sugiro entrevistarem o Marcelo Anthony, o Gabeira, o Otto ou a Maria Alice Vergueiros para termos uma visão mais abrangente e imparcial sobre o assunto da próxima vez, que tal?

Enquanto a mídia faz piada com o assunto, a indústria das drogas chegou ao ponto de produzir embalagens plásticas, com o peso impresso no plástico, para o cliente ‘cheirar o pó’ sem a necessidade de fazer as ‘carreirinhas’ (em marketing: adequação do produto às necessidades do público-alvo). Rótulos foram apreendidos, também, ou seja, as drogas deixaram de ser commodities. Milhões de reais em armas e drogas foram encontrados. Lembrando: se há oferta, é porque existe procura.

Para a mídia, a violência nos morros é fruto da inoperância da polícia corrupta do Rio e do Estado brasileiro, que não dá educação de qualidade às comunidades carentes das favelas. É isso que justifica o poder e o dinheiro dos narcotraficantes. O resto é hipocrisia de ‘caretas’, como eu, que não entendem a necessidade da descriminalização das drogas e das passeatas da maconha organizadas pelos artistas, intelectuais e universitários de classe média alta no país inteiro. O usuário, coitado, não tem culpa de nada. Afinal, dar um ‘tapa na pantera’ não vicia ninguém. Cheirar uma ‘carreirinha’ (agora um tubinho) nas festas chiques, é chique. E festejamos, em filme, a vida-louca do dependente químico Cazuza. Sorrimos para a ‘maconha inocente’ fumada pela jornalista, no filme Cidade de Deus. Tudo é normal. E consumo nada tem a ver com o tráfico de armas e drogas da periferia carioca. Depois é só chamar o coronel Nascimento, invadir o ‘alemão’ e pronto.

Falta investimento em educação

De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2010, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), o Brasil é líder na triste estatística do número de usuários de cocaína na América do Sul. São impressionantes 890 mil usuários. Ainda de acordo com a Unodc, o país é o 8º no ranking mundial na apreensão da maconha, com aproximadamente 3% da erva apreendida no planeta. Somos o 6º país em consumo no mundo, com 8,8% de brasileiros que ‘apertam, mas não vão acender agora’. A maconha é a 11ª droga mais perigosa do mundo, afirma documentário da BBC sobre o assunto. Em termos de drogas injetáveis, só perdemos para a China, EUA e Rússia. Ou seja, o Brasil está mal e o Rio pede paz, mas ainda escreve com cocaína as letras brancas da palavra. A sociedade pede o fim do tráfico, mas parte dela fica preocupada e se perguntando: onde irão encontrar o produto para consumo depois da invasão do Alemão? Produção de subsistência? Será?

Bem, Jesus, os tempos mudaram. Hoje, o Senhor seria apedrejado junto e ainda seria acusado de ser Você o hipócrita. Usuário, aqui, é vítima. Afinal, a culpa das drogas é do governo, pela falta de investimento em educação de qualidade. É o que afirmam os sociólogos, universitários e as classes artísticas e jornalísticas do nosso país, depois de darem o seu ‘tapinha’ na erva, é claro.

Pronto, agora estou aberto às pedradas…

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Analista de marketing, Salvador, BA