Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Desvelização universal

O secretário americano da Defesa, Robert Gates, repreende Julian Assange. Diz que a desvelização da WikiLeaks põe sob risco os interesses americanos, incluindo-se o interesse americano de, nos países hospedeiros, os traidores e colaboracionistas permanecerem vivos, traidores e colaboracionistas. Gates pode não estar considerando o poder de a WikiLeaks revelar os atos da contra-inteligência. É razoável supor que o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e o general Jorge Armando Félix estavam apenas passando uma falsa aparência de serem colaboracionistas. Neste caso, não obstante Jobim e Felix permanecerem vivos, infelizmente o Brasil perde dois importantes peões da contra-inteligência.

Mas na iniciativa do romântico visionário australiano, nem todas as informações, corporativas ou governamentais, são elegíveis para vazamento. O conteúdo não deve ter sido amplamente divulgado e o possível impacto não deve recair exclusivamente sobre indivíduos, mas sobre grupos.

Às vezes, a medida do amplamente divulgado e a difusão do impacto podem ser dúbias. Exemplo: desde 2008, os trabalhadores de primeira categoria da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC – têm condições facilitadas para serem pacientes da União dos Médicos – Unimed. O governo federal paga metade da mensalidade à seguradora, enquanto a outra metade sai do bolso do trabalhador. Na linguagem clara do dinheiro, isto representa, na maioria dos casos, um mínimo mensal dividido em duas partes de R$45,00. Para compor o quinhão variável não importa se o cidadão precisa extrair uma unha encravada no fim de semana, ou realizar uma cirurgia ortopédica quatro dias depois de um acidente motociclístico: além dos R$45,00 fixos o indivíduo pagará, no máximo dos máximos, R$80,00 pelo atendimento. Portanto, o trabalhador de primeira categoria infeliz que tem uma péssima saúde entregará, mensalmente, R$125,00 para ser atendido nos melhores estabelecimentos médicos de Santa Catarina. Se há 4.997 trabalhadores elegíveis nos quadros da instituição, o governo federal transfere a renda de R$224.865,00/mês para a Unimed de Florianópolis; e se todos os trabalhadores elegíveis da Universidade estiverem com uma saúde de ferro – oxalá! –, nenhum médico da União terá precisado os atender, em troca.

Nada disso causaria espanto, se o objetivo principal do Sistema de Saúde Complementar/suplementar de que gozam os trabalhadores da UFSC fosse outro que não o de permitir aos trabalhadores da UFSC não serem atendidos unicamente pelo Sistema Único de Saúde – SUS, no encardido Hospital Universitário que administram. O paradoxo semântico, de o sistema de saúde complementar/suplementar ser e não-ser uma parte do SUS, não será abordado neste artigo.

Na função de professor daquela Universidade, tive acesso a estas informações, mas não me parece que tenham sido amplamente divulgadas para além da boca-pequena dos corredores, e do preto no branco oficialesco. Resta saber se os colaboradores lusofalantes da WikiLeaks concederiam ao encarte (PDF) explicativo do plano privado-público-privado, o destaque de vazamento.

Às vezes, a dúvida sobre a amplitude da divulgação apenas se dilui pela aposição do rótulo ‘secreto’. Mas, se o secretário Gates depende de um diplomata para lhe dizer secretamente que Medvedev é um Robin de um Putin que é Batman, sinceramente, os Estados Unidos estão mal servidos de humoristas. As iniciativas de contra-inteligência do ministro da Defesa também eram previsíveis.

Finalmente, segundo o princípio da desvelização universal, depreendido da ação de Assange, a verdade sobre informações sensíveis ao coletivo traz o bem, enquanto o segredo, o mal. O poder metafísico dessa crença, infelizmente, ainda não eximiu o criador da WikiLeaks de se tonar um globe trotter, com três serviços secretos em cada calcanhar.

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Programador drupal, linguista e filósofo, Florianópolis, SC